O falecimento do ex-presidente Jimmy Carter, aos 100 anos, neste domingo (29), reacendeu debates sobre seu papel na política americana e no mundo. Amplamente celebrado pela imprensa tradicional e líderes mundiais por seu trabalho humanitário e pela defesa dos direitos humanos, Carter também foi um marco no reposicionamento do Partido Democrata e na guinada conservadora que moldou a economia e a política externa dos EUA nas últimas décadas.
Enquanto sua presidência (1977-1981) é frequentemente lembrada pelos Acordos de Camp David e sua postura frente as ditaduras sulamericanas, uma análise mais crítica revela sua contribuição para a consolidação do neoliberalismo e o avanço do imperialismo norte-americano.
Carter representou uma ruptura definitiva com a tradição reformista do Partido Democrata, que vinha desde o New Deal de Franklin Roosevelt. Ele inaugurou um ciclo de austeridade fiscal, desregulamentação econômica e repressão trabalhista que pavimentaria o caminho para as políticas de Ronald Reagan nos anos 1980.
Política econômica e repressão trabalhista
Um dos marcos da administração Carter foi a nomeação de Paul Volcker para a presidência do Federal Reserve, em 1979. Volcker ficou conhecido por implementar a chamada “terapia de choque” econômica, elevando drasticamente as taxas de juros para conter a inflação, o que gerou uma recessão com aumento do desemprego. Essa política enfraqueceu o poder de barganha dos sindicatos e abriu espaço para cortes salariais e a precarização do trabalho.
Carter também deu início à desregulamentação de setores estratégicos, como aviação, transporte rodoviário e ferroviário, medidas que acabaram minando as bases sindicais. A Lei dos Transportes Rodoviários de 1980, sancionada por Carter, permitiu que empresas substituíssem motoristas sindicalizados por contratados independentes, marcando um golpe significativo contra a organização sindical no setor.
Sua postura frente aos trabalhadores ficou evidente durante a greve dos mineiros de carvão em 1978, quando mais de 160 mil mineradores desafiaram uma ordem de retorno ao trabalho sob a Lei Taft-Hartley. Embora Carter tenha mobilizado a Guarda Nacional, ele não conseguiu forçar os trabalhadores a cederem, o que destacou a resiliência sindical, mas também a alienação crescente dos trabalhadores em relação ao Partido Democrata.
Política externa e militarismo
No campo internacional, Carter promoveu uma política ostensivamente centrada nos direitos humanos, mas que, na prática, priorizou os interesses estratégicos dos EUA. Sob a orientação de Zbigniew Brzezinski, conselheiro de Segurança Nacional, Carter reforçou a guerra fria contra a União Soviética, financiando guerrilhas islâmicas no Afeganistão, o que resultaria na ascensão do Talibã e da Al-Qaeda.
Sua administração também consolidou o “Doutrina Carter”, que definiu o controle das reservas de petróleo no Oriente Médio como uma questão de segurança nacional. Essa política justificaria intervenções militares na região, culminando em guerras posteriores, como a invasão do Iraque em 2003.
Ao mesmo tempo, Carter cedeu à pressão de ditadores aliados, como o Xá do Irã, a quem descreveu como líder de uma “ilha de estabilidade” no Oriente Médio. Ironicamente, essa aliança se desfez com a Revolução Iraniana de 1979, que derrubou o regime autoritário e expôs as contradições do discurso de direitos humanos.
Além disso, a política monetária agressiva de Volcker não apenas impactou os trabalhadores e sindicatos nos EUA, mas também exerceu enorme pressão sobre economias em desenvolvimento, particularmente na América Latina. O aumento das taxas de juros internacionais elevou os custos das dívidas externas, ampliando a dependência econômica desses países em relação aos EUA. Essa estratégia consolidou a hegemonia econômica americana, mesmo às custas de crises sociais e financeiras em nações periféricas
O legado de Carter na política americana
Jimmy Carter é frequentemente apresentado como um “peacemaker” ou um símbolo de ética na política, mas sua presidência foi um ponto de inflexão para a classe trabalhadora americana. Suas políticas pavimentaram o caminho para o neoliberalismo que se consolidaria sob Reagan, marcando o fim de uma era de conquistas sociais e o início de uma ofensiva contra os direitos dos trabalhadores.
Seu governo exemplifica como o Partido Democrata também desempenhou um papel ativo no avanço do capitalismo neoliberal, desmontando proteções trabalhistas e promovendo políticas de austeridade. A memória de Carter, assim, deve ser contextualizada dentro do contínuo esforço bipartidário de priorizar os interesses do capital em detrimento das necessidades da classe trabalhadora.