No final de setembro de 2016, o governo de Michel Temer apresentou a Medida Provisória 746, que trouxe mudanças profundas nas diretrizes e bases da educação nacional. As alterações mais significativas foram no Ensino Médio. Tal MP, como é usual, era acompanhada de uma exposição de motivos, que listava uma série de problemas do Ensino Médio.

Entretanto, os problemas listados não eram os mais graves a afetar o Ensino Médio brasileiro e as propostas não eram nem são soluções para os reais problemas. O problema mais grave, o do financiamento, nem sequer foi lembrado. Ao apontar a existência de 13 disciplinas obrigatórias como um “problema” poderia levar alguém a imaginar que o número de horas de duração do Ensino Médio fosse aumentado. Nada disso: a duração foi reduzida para, no máximo, 1,8 mil horas e novas disciplinas surgiram.

A redação da justificativa da MP afirmava que o tempo dedicado à “Base Nacional Comum Curricular não poderá ser superior a 1,8 mil horas do total da carga horária do Ensino Médio”, deixando clara a intenção do governo: as escolas públicas não podem preparar adequadamente seus estudantes. Como uma lei pode limitar a carga horária a um máximo? Se um dos estados brasileiros desejar impulsionar seu desenvolvimento social e cultural e promover o crescimento econômico, tendo recursos para tal, com professores preparados e bem remunerados, não poderia, pois a lei proíbe aumentar e melhorar o Ensino Médio. Se uma escola tivesse disponibilidade de professores e seus estudantes estivessem motivados, ela, por lei, não poderia aumentar a carga horária.


Outra das justificativas da MP afirmava que uma pesquisa “evidenciou que os jovens de baixa renda não veem sentido no que a escola ensina”. Nenhum lugar do texto apresentado como justificativa para a lei sugere onde estaria essa falta de sentido. Além disso, quem escreveu esse texto nem sequer cogitou a hipótese mais verossímil de que esse desacordo entre o que a escola ensina e a expectativa da juventude de baixa renda não está na escola, mas nas possibilidades que se oferecem a esses jovens. Ou seja, pretende-se reduzir a escola para se adaptar à vida daqueles com poucas perspectivas. Ora, fazer isso reduzirá ainda mais as perspectivas de quem tem baixa renda, e, no futuro, a escola deverá ser ainda mais reduzida para se adaptar a uma juventude com ainda menos perspectivas. Quem redigiu tal texto não atinou que o problema a ser superado é a falta de perspectivas dos jovens de baixa renda e a solução, obviamente, não é a piora do Ensino Médio.

Aquela MP, que, com poucas alterações, virou a Lei 13.415, em fevereiro de 2017, permite a criação de profissionais da educação por meio de um título de “notório saber”, concedido pelos sistemas de ensino. Ou seja, professores sem preparo para tal. Os defensores dessa ideia argumentavam que tais educadores seriam apenas professores das disciplinas técnicas dos cursos técnicos. Um engenheiro poderia dar aulas das disciplinas técnicas de um curso de eletrônica ou de edificações de nível médio. Ou profissionais com formação superior em áreas de saúde (como Enfermagem, Medicina, Psicologia etc.) poderiam dar aulas em disciplinas específicas dos cursos de técnicos de enfermagem. Mas essa interpretação não está correta. Na forma que está redigida, não é sequer exigido que os sujeitos a receber o tal “notório saber” tenham um curso superior, nem as disciplinas às quais se dedicariam estejam limitadas às disciplinas técnicas específicas.

Parece claro que essas limitações impostas ao Ensino Médio estão ligadas a uma emenda constitucional da mesma época, aquela do teto de gastos. Com tal emenda, claro, os diversos gastos governamentais deveriam ser reduzidos. Os do Ensino Médio também, por meio dessa lei.

A pressão de alunos e professores foi insuficiente para alterar o escopo da lei no Congresso

Foi bastante difícil, na época, convencer uma porção da sociedade das consequências nefastas da lei, posteriormente apelidada de Novo Ensino Médio (NEM). Grande parte da população e enorme parte da mídia haviam defendido a derrubada da presidenta Dilma Rousseff: como acreditar que o governo que acabavam de avalizar pudesse ter uma proposta tão perversa? Muitos se negavam a aceitar o que a lei dizia com clareza: começava, talvez, o período recente dessa epidemia que levou à dissonância cognitiva tão comum atualmente. Foi graças à mobilização dos estudantes das escolas públicas, juntamente com a militância de professores e demais educadores, que a situação começou a mudar.

Infelizmente, as mudanças aprovadas foram apenas parciais. A ridícula definição de uma carga horária máxima foi alterada e a duração do Ensino Médio passou para, no mínimo 2,4 mil horas. Para aqueles que optarem pela formação técnica e profissional, o limite mínimo é inferior, de 2,1 mil horas. Também, infelizmente, as possibilidades de um educador com “notório saber” e várias outras limitações foram mantidas. A pressão popular foi insuficiente para alterar o balanço político no Senado e na Câmara dos Deputados.

O Brasil sempre esteve em uma posição intermediária no que diz respeito aos indicadores educacionais entre os países da América do Sul. A componente educacional do Índice de Desenvolvimento Humano, indicador que combina o número de anos de estudo da população adulta com o número médio de anos de estudo oferecido a cada momento pelo sistema escolar, mostra bem isso. A nova versão do NEM agora aprovada, mesmo que importantes vetos sejam impostos, vai garantir que, na melhor das hipóteses, continuemos em uma posição intermediária.

Não se deveria fazer uma lei para limitar ou restringir a educação de um país. As gerações futuras pagarão caro. •


*Professor no Instituto de Física da USP e ex-presidente do Inep.

Publicado na edição n° 1320 de CartaCapital, em 24 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Futuro do passado’

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Última Atualização: 18/07/2024