Uma das marcas negativas resultantes da ascensão da extrema direita, dentro e fora do país, é o discurso e a prática armamentistas. Como se não bastasse a histórica violência da sociedade brasileira — herdada, sobretudo, do escravismo e do militarismo —, o país ainda tem de lidar com o recente aumento do número de armas em circulação, sobretudo a partir da chegada de Jair Bolsonaro ao poder.
Hoje, o Brasil tem mais de dois milhões de registros de posse de armas de fogo ativos no Sistema Nacional de Armas (Sinarm), da Polícia Federal. Já as armas de fogo com registro expirado somam mais de 1,7 milhão.
Desde 2017, o crescimento no número de armas foi de 227%; do total de registros, 96% são para homens. Com esse aumento, cresceram também a circulação de armas mais potentes: a quantidade de pistolas avançou 53% e a de fuzis, rifles e carabinas, 8,6%.
As informações compõem o Anuário 2024 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que faz um amplo apanhado sobre a violência no país. Vale salientar que o Exército — responsável por controlar parte desses artefatos, como os dos CACs (caçadores, atiradores e colecionadores) — não divulgou seus dados aos pesquisadores, diferentemente do que ocorreu com a PF.
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O que emerge desses e de outros dados, ao longo dos últimos anos, é que a herança deixada pelo bolsonarismo — que jogou por terra o esforço feito desde o início dos anos 2000 para a redução do acesso às armas de fogo — levará tempos para ser desfeita.
“Após mais de 15 anos sob uma política restritiva de acesso a armas de fogo e munições, implantada com a promulgação do Estatuto do Desarmamento em 2003, houve uma mudança drástica a partir de 2018, com sua intensificação a partir de 2019”, apontam Roberto Uchôa, policial federal e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; David Marques coordenador de projetos do FBSP, e Marina Bohnenberger; pesquisadora do FBSP, em artigo conjunto publicado no Anuário.
Os autores argumentam que, através de decretos, portarias e instruções normativas, o governo federal, sob Bolsonaro, “reduziu as restrições, permitindo que a população tivesse acesso a grandes quantidades de armas de fogo e munições”.
A mudança de rota a partir do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve início com a edição do decreto 11.366/2023, que congelou temporariamente o mercado de armas, determinou o recadastramento das que foram adquiridas por CACs a partir de 2019, e criou um grupo de trabalho para discutir uma nova regulamentação do setor. Esse trabalho levou à publicação de outro decreto, o 11.615, em julho de 2023, que estabeleceu novas diretrizes para o controle de armas no país.
Cultura entranhada
Mas, de acordo com o Anuário, apesar dos esforços do atual governo no sentido frear a “farra armamentista”, o ano de 2023 ainda teve aumento de 34% em relação a 2022 no número de registros de armas.
Isso reflete a forte cultura entranhada na sociedade e estimulada pela extrema direita, que defende o acesso a esse tipo de instrumento, sob o falacioso argumento de que os civis devem portar armas para sua defesa, de sua família e de sua propriedade.
“É evidente que a gente passou por um período, sobretudo o do governo Bolsonaro, no qual o número de armas de fogo cresceu bastante no país, devido à flexibilização do acesso que foi muito significativo, mas em 2023 a gente voltou a registrar aumento no número de armas de fogo registradas junto à Polícia Federal”, explica David Marques ao Portal Vermelho.
Ou seja, completa, “há sinalização de que o mercado e o interesse por armas de fogo no país — muito embora a gente tenha hoje um cenário político e institucional diferente — ainda é bastante grande e as consequências, os efeitos da flexibilização, ainda vão permanecer impactando a segurança pública por bastante tempo”.
A realidade concreta e estudos diversos vêm mostrando, no entanto, que mais armas em circulação incide sobre o aumento da violência e da letalidade, como ocorre nos casos de violência doméstica, além de ajudar a alimentar o mercado paralelo, em benefício das organizações criminosas, sejam o tráfico, sejam as milícias — pelas quais, aliás, o clã Bolsonaro já demonstrou simpatia em mais de uma ocasião.
Segundo pesquisa do Instituto Sou da Paz, a cada duas mulheres assassinadas no Brasil em 2020, uma foi morta por arma de fogo, resultando em 1.920 mulheres vítimas fatais de violência armada, aumento de 5,6% em comparação com 2019. O levantamento também constatou que a taxa de homicídio de brasileiras aumentou 2% em 2020, e 5% em se tratando apenas daqueles cometidos com armas de fogo.
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Nesse cenário, em que o machismo e a misoginia desempenham papel central, vale destacar um aspecto que explica, em boa medida, o “sucesso” do discurso em defesa das armas para determinada fatia da população, sobretudo masculina.
Conforme salienta o artigo já citado, “em muitas culturas, a posse de armas está intimamente ligada à construção da masculinidade e às normas tradicionais, que pressionam os homens a serem agressivos, controladores e emocionalmente impenetráveis. Esse contexto pode levar à busca de validação por meio do uso de armas de fogo, que são frequentemente vistas como símbolos de poder e controle, reforçados por mídias e algumas retóricas políticas”.
Ademais, analisa, “relações entre o discurso armamentista e ideologias de extrema-direita passam pela construção de um certo ideal de masculinidade hegemônica atrelado à defesa de valores tradicionais e familiares conservadores”.
Armas desviadas
No caso do desvio para o crime organizado, reportagem da Folha de S.Paulo publicada em maio, com dados do Sou da Paz, apontou que quase seis mil armas de CACs foram alvo de roubo, furto ou extravio entre os anos de 2018 e 2023. O número representa um aumento de 68% em relação a 2018.
Além disso, relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), revelado por O Estado de S.Paulo em março, afirma que, entre 2019 e 2022, o Exército liberou licenças de CACs para mais de cinco mil condenados por crimes como tráfico de drogas e homicídio, além de pessoas com mandados de prisão em aberto, e “laranjas” do crime organizado.
Como forma de melhorar o controle sobre esse arsenal, o governo decidiu transferir a fiscalização dos CACs para a Polícia Federal. A iniciativa é vista como salutar, porém, especialistas chamam atenção para a necessidade de fornecer estrutura e pessoal para que a corporação dê conta desse desafio, uma vez que serão cerca de 4,8 milhões de armas a serem fiscalizadas a partir de 2025.
“Para que a PF consiga fazer o gerenciamento e a fiscalização adequada e evitar desvios nesse mercado, é preciso que sejam disponibilizadas as ferramentas tanto do ponto de vista tecnológico, como de recursos humanos, infraestrutura legal e normativa”, diz Marques.
Por fim, para dar conta dos obstáculos impostos pela política de libera-geral do bolsonarismo, é importante, segundo o Anuário, “que o governo federal seja uma voz e um ator responsável no debate público e legislativo sobre o tema, não ficando a reboque dos grupos armamentistas e industriais organizados na definição da agenda”.