O voluntarismo não é uma característica apenas das “esquerdas”. É encontrado também na direita e na extrema direita, em especial quando se aplica a situações contraditórias. Donald Trump, por exemplo, talvez seja, hoje, o maior exemplo de voluntarista no mundo. Tem em mãos, a partir do dia 20, um imenso poder econômico e militar. Contudo, os fatos muito provavelmente constituirão uma barragem a sua vontade.
É que algumas de suas prioridades anunciadas em campanha ou depois de sua posse são contraditórias entre si ou afetarão negativamente a economia e a sociedade americanas, implicando sua revogação. Ele quer livrar os Estados Unidos de imigrantes ilegais, taxar importações para proteger a indústria e ao mesmo tempo combater a inflação. Quer também tornar o país autossuficiente em petróleo, ignorando as mudanças climáticas.
Vejamos quais seriam as consequências concretas dessas medidas. Os imigrantes ilegais são boa parte da mão de obra americana que se submete a salários extremamente baixos em setores informais na área de serviços e que, a despeito disso, são essenciais para a sociedade. Entre eles estão trabalhadores na construção civil, empregados domésticos, trabalhadores rurais, arrumadeiras, cuidadores de crianças e idosos etc.
Os empregadores dos imigrantes que prestam esses serviços, sejam eles democratas que defendem diversidade de gêneros ou republicanos caucasianos racistas, ficarão enfurecidos quando sua mão de obra desaparecer na onda antimigratória. Gerentes de hotéis e restaurantes, donos de bares semiclandestinos, gente que conserta carros ou aparelhos domésticos, todos desaparecerão do mercado de trabalho.
As elegantes senhoras do Partido Republicano, que estiveram na linha de frente dos aplausos frenéticos a Trump no discurso de posse, terão que aumentar consideravelmente os salários de seus serviçais, pois brancos, na América que voltará a ser grande, não aceitarão receber pouco por serviços subalternos. Enfim, não há de se admirar caso essas senhoras, dando conta da realidade, não passarem a odiar Trump.
Isso, contudo, é uma situação menor. Embora possa afetar, na margem , o custo de vida, o aumento dos salários dos informais não abalará a inflação. O que terá inevitável impacto inflacionário é a obsessão de Donald Trump em taxar importações. Ele sugere, como um ignorante qualquer, que o custo de impostos sobre importações recai sobre o exportador estrangeiro. Na prática, ocorre o oposto. Quem compra paga.
Assim, se insistir na taxação generalizada de importações, o presidente americano estará impondo um custo adicional para o comprador local não só de bens de consumo, mas, especialmente, de insumos que entrarão nas cadeias produtivas do setor industrial. Nesse caso, a inflação certamente vai disparar. As vendas externas correspondem a 10% do PIB do País, e boa parte do que for exportado com custos tarifários de insumos mais altos esbarrará na concorrência chinesa.
Trump disse com sua arrogância típica que os Estados Unidos não dependem do Brasil e da América Latina, mas o Brasil e a América Latina dependem dos Estados Unidos. Infelizmente, depois de décadas de industrialização incipiente, o Brasil continua sendo um grande exportador de matérias primas, inclusive para os Estados Unidos. Cito de forma especial o nióbio, de que somos grandes produtores e exportadores.
Sem nióbio a indústria espacial americana colapsa, e o projeto de Elon Musk de mandar um homem a Marte vai junto. O nióbio é também um elemento essencial para a indústria de “fusão nuclear”, que promete ser no futuro a solução energética infinita para o mundo. Já o lítio boliviano, extremamente importante para fabricação de baterias com ampla aplicação industrial, e cujo controle o governo americano disputa com a China, está sob firme controle do governo, que não o cederá facilmente aos EUA.
A prevenção anunciada contra homossexuais não tem qualquer efeito prático. Desde os primórdios da Era Moderna, os filósofos que recriaram na Europa e nos próprios Estados Unidos as formas de governo de Atenas, inspiraram como princípios básicos da democracia o direito à vida, à liberdade e à propriedade. Acaso Trump quer acabar com o direito à liberdade das pessoas de escolher o próprio sexo? Em qual ponto exatamente isso contraria a Constituição americana?
O turbilhão dos outros projetos apresentados por Trump à imprensa, em sua entrevista espalhafatosa, não passa de gestos impressionistas para enganar trouxas, igualmente sem consequências práticas. Mudar o nome do Golfo do México para Golfo da América teria efeitos similares ao de mudar o nome do Mar Mediterrâneo para Mar da Subamérica, em homenagem à subserviência europeia aos Estados Unidos desde a Segunda Guerra.
Não seria fácil para ele retomar o Canal do Panamá e anexar à força a Groenlândia ou Canadá, pois haveria uma reação mundial contra a violação do Direito Internacional, que ainda existe a despeito dele e das Forças Armadas que comanda. Examinando uma a uma as medidas que anunciou, não se encontra qualquer coerência entre elas – exceto o negacionismo dos desastres climáticos extremos e da Covid 19, imbecilidades dignas de um troglodita que ameaça o futuro da Humanidade.
No plano internacional ele não deu qualquer indicação sobre que rumo concreto tomará em relação a sua principal promessa de campanha nessa área, a saber, como acabará com a guerra na Ucrânia “em uma semana”. A única coisa que disse é que essa guerra não teria que ter começado. Entretanto, disso sabemos muito bem. E o que todos esperam agora é como acabar com ela de uma forma tão sumária, conforme anunciou.
Trump não é um presidente, é um artista. Para ele a Casa Branca é um palco. Seu jeito narcisista revela isso. Teremos que viver quatro anos durante os quais o dirigente máximo da maior potência militar do mundo aparecerá toda semana na TV ou numa coletiva na Casa Branca com um “fato novo”, cuja única relevância é ter sido dito por ele. Assim, acomodem-se. Sentem-se que o leão é manso!
Publicado originalmente na “Tribuna da Imprensa” online.
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