Anteontem, Bolsonaro foi ouvido no STF no âmbito do inquérito que apura a assim chamada “tentativa de golpe de Estado”. Na imprensa de esquerda, jornalistas e comentaristas já vinham anunciando que iam “preparar a pipoca” para assistir à transmissão, na qual esperavam ver o ex-presidente, dito “inominável”, ser engolido pelo super-herói Alexandre de Moraes, numa cena catártica. Temos motivos para crer que tenham sofrido alguma decepção, mas, mesmo assim, usando as técnicas que costumam criticar na imprensa burguesa, traduziram a seu modo o que qualquer um pode ver no YouTube, sem cortes, por enquanto.
Segundo comentaristas do Portal 247, Bolsonaro foi “tchtchuca”, chamou Xandão de “excelência”, “afinou” etc. etc. etc. Chegaram até mesmo a externar o estranhamento diante do tom assumido por ele, que não xingou, não esbravejou, não falou palavrão. Ao que tudo indica, o pessoal desperdiçou a pipoca. O que vimos ali, objetivamente, foi um pouco diferente disso.
Segundo a comentarista Liana Cirne, do 247, apresentada como “jurista”, Bolsonaro se complicou do ponto de vista jurídico porque teria confessado a própria culpa, ao usar “um discurso contínuo sobre fraudes eleitorais”. “Ele admitiu se valer de um discurso sistemático de fraudes eleitorais e, politicamente, reconhece que essa fraude eleitoral jamais existiu. É muito importante isso porque todo o fundamento da denúncia inicia pelo fato da estratégia de ter se valido de um discurso sistemático de fraude eleitoral para desestabilização democrática [sic]. Então ele admite a premissa”.
O problema, porém, escamoteado pela jurista, está justamente na “premissa”, segundo a qual levantar dúvidas sobre a segurança do sistema de urnas eletrônicas é, em si, um crime. Segundo ela e toda a imprensa burguesa, nossa velha conhecida, “levantar dúvidas sem provas”, malgrado o paradoxo, seria um ato criminoso. A bem do juízo comum, vamos lembrar que, havendo provas, a dúvida se converte em certeza, donde levantar dúvidas não implique ter provas. Como, no entanto, estamos no reino do juízo extraordinário, deixemos de parte esse pormenor, que, de saída, invalidaria a premissa. Passemos à argumentação de Bolsonaro.
O ex-presidente lembrou que, em 2010, o hoje ministro do STF Flávio Dino, então candidato ao governo do Maranhão, pôs em dúvida o sistema eleitoral. Na ocasião, as urnas deram a vitória a Roseana Sarney, em primeiro turno, por apertada margem (50,08%). Bolsonaro, que foi impedido pelo STF de mostrar o vídeo em que Flávio Dino dizia o mesmo que ele, rememorou que Aécio Neves, quando perdeu para Dilma Rousseff em 2014, foi além das críticas. Ele contratou peritos que chegaram à conclusão de que é impossível auditar as urnas eletrônicas (esse relatório, pago pelo PSDB, esteve na internet durante muito tempo) e que afirmaram, como é sabido, que todo sistema eletrônico é passível de vulnerabilidade.
Bolsonaro não disse, mas qualquer um pode lembrar que, logo depois desse relatório, Aécio misteriosamente deixou de questionar as urnas e, ao mesmo tempo, teve início o processo que culminaria no golpe de 2016 (“com STF, com tudo”), com a destituição de Dilma Rousseff do poder e as consequências que conhecemos. O ex-presidente reiterou que, desde seu tempo de parlamentar, defende o voto impresso auditável, que, diga-se de passagem, é usado em todos os países que adotaram a urna eletrônica, à exceção de Bangladesh, do Butão e do Brasil, segundo reportagem da Folha de São Paulo.
O STF, em sua cruzada em defesa da “democracia”, interpretou que, ao pôr em dúvida o sistema de urnas eletrônicas, o então presidente estaria desacreditando a lisura das eleições para gerar uma convulsão social e facilitar um golpe ou coisa do gênero. Para variar, a população é tratada com um bando de idiotas e ignorantes manipuláveis, que precisam de uma salvaguarda “esclarecida”. Não seria mais fácil adotar o voto impresso auditável como segunda medida de segurança e calar a boca dos críticos? Segundo os nossos tribunais, esse sim seria um sistema fraudável, donde concluímos, inapelavelmente, que a tríade Brasil, Butão e Bangladesh esteja na vanguarda da democracia mundial. A conferir.
Liana Cirne também mencionou como vulnerabilidade do réu o fato de ter reconhecido participação em reunião com o “hacker” Walter Delgatti, outrora tratado no 247 como herói da Vaza Jato. “Confessa que teve a reunião com o ‘hacker’, cujo propósito era justamente provar que as urnas eletrônicas poderiam ser fraudadas”, afirmou. Aí a porca torce o rabo. Na Vaza Jato, o mesmo “hacker”, mediante invasão ilegal de sistemas, que é o que fazem os “hackers”, teria obtido extenso material que ajudaria na libertação do presidente Lula, preso por quase dois anos após um processo igualmente farsesco. Bolsonaro, diferentemente de Dino e de Aécio, precisava de “provas” para levantar suspeitas sobre as urnas, mas uma reunião com o “hacker” já configurou, em si, um crime.
A jurista do 247 também destacou do depoimento de Bolsonaro que ele não teria negado o conhecimento da chamada “minuta do golpe”, que, afinal, teria confirmado ter tido acesso ao documento e ainda teria revelado que o apresentou em reunião com os comandantes das Forças Armadas. “Ele poderia ter controvertido isso e não controverteu. Ele admite que existia e que ele teve acesso e conheceu a minuta do golpe. Essa é uma admissão muito relevante”, disse ela.
A “admissão” é “relevante” apenas e tão somente na hipótese de que seja crime a existência de um papel, sem assinatura, que circulou entre um grupo restrito de pessoas sem levar a nenhuma consequência concreta. Aparentemente, a estratégia de Bolsonaro não foi a de negar os supostos crimes, mas a de negar que tais ações constituam, de fato, crimes. Ele foi didático ao explicar que sabe como se fazem golpes de Estado, tendo chegado a descrever o de 1964, que teve apoio de empresários, da imprensa e do exterior, no que fez coro com Michel Temer, especialista no tema, que reconheceu as mesmas características no de 2016, protagonizado por ele próprio.
Segundo Bolsonaro, para dar o tal golpe de que é acusado, não bastariam uns poucos militares e uma “baderna” popular. “Tem os malucos que ficam com essa ideia de AI-5, de intervenção militar das Forças Armadas… Os chefes das Forças Armadas jamais iam embarcar nessa só porque o pessoal estava pedindo ali”, disse. De acordo com ele, o “seu pessoal”, os manifestantes que se reuniram várias vezes na avenida Paulista e outras localidades do país, são “ordeiros”.
O fato é que o mais provável é que o STF vá condenar Bolsonaro, pois a decisão é política, não propriamente jurídica, como o foi a decisão que tirou Lula da eleição de 2018. Seus argumentos não serão levados em conta nos tribunais esclarecidos, que vêm usando o fígado para condenar pessoas do povo a longas temporadas na prisão, mas, do lado de fora, no meio do “populacho”, talvez façam sentido. Se a democracia estiver mesmo a salvo, o povo, a seu tempo, fará seu próprio julgamento.