de Luiz Henrique Lima Faria
Há algo profundamente perturbador na maneira como certos ambientes de trabalho se estruturam, sobretudo aqueles que, em tese, deveriam ser templos do conhecimento, da liberdade de pensamento e da construção coletiva do saber. O que tenho observado, com uma clareza cada vez mais desconfortável, é que muitos espaços acadêmicos se tornaram territórios férteis para a reprodução de práticas que não apenas instrumentalizam critérios assimétricos mascarados de mérito para definir quem acessa determinadas funções, mas também operam como dispositivos de controle simbólico.
O que se coloca em jogo nesses ambientes, não se trata da mera disputa por espaços de trabalho, disputa-se, sobretudo, o direito de ser visto, de ter voz, de existir. O mais perverso é que esse direito à existência não se conquista pela produção do saber, pela excelência acadêmica ou pelo compromisso ético com a coletividade, mas pela adesão tácita às lógicas subterrâneas que regem os pactos, os favorecimentos e as fidelidades veladas que mantêm certos grupos no controle dos recursos, dos prestígios e dos próprios sentidos do que se reconhece como valioso.
Compreender essa dinâmica exige recorrer a obras como Vigiar e Punir e Microfísica do Poder, do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), que oferecem entendimentos particularmente potentes para analisar como, mesmo as instituições acadêmicas, longe de serem espaços neutros ou intrinsecamente seguros, podem se converter em dispositivos de disciplinamento, de normalização da violência e de produção de narrativas excludentes que, uma vez naturalizadas, passam a ser tomadas como verdades incontestáveis.
Nesses ambientes acadêmicos, contaminados e distorcidos pelo modus operandi que favorece uns poucos à custa do sacrifício de muitos, o poder não se manifesta apenas por meio de demonstrações ostensivas, nem se limita às ordens formais. Insinua-se no gesto calculado que nega a escuta, no olhar atravessado que desautoriza, na distribuição seletiva de recursos e na definição arbitrária do que merece ser considerado relevante. É justamente nesse terreno, diáfano na aparência, mas devastador em seus efeitos, que germinam a violência epistêmica e o assédio moral.
A violência epistêmica não se realiza apenas na negação explícita de qualquer direito à divergência. Ela é cuidadosamente engendrada nos bastidores, se inscreve na desqualificação sistemática de pontos de vista que não se alinham ao cânone do grupo dominante e opera em favor da invisibilização de experiências, de temas de pesquisa e de práticas docentes que ousam se desviar das rotas pré-determinadas.
Nesse contexto, o assédio moral emerge como complemento operacional necessário. Não se trata de agressões isoladas, mas de um processo disciplinar sustentado por vigilância constante, cerceamento, isolamento e controle. Seu propósito não é, a princípio, excluir aqueles que não se alinham, mas submetê-los, convertendo sujeitos autônomos em autômatos, indivíduos divergentes em peças obedientes e intelecções potentes em marasmos de alma.
Quando essas duas formas de violência se cruzam, o resultado é um ambiente em que o controle simbólico se converte em controle material. A engenharia social transforma-se em uma estratégia sistemática de manutenção do poder. Aos que não se submetem à lógica do poder relacional, resta suportar a difamação, a agressão psicossocial, o silenciamento progressivo e, não raramente, arcar, de forma solitária, com o ônus do próprio adoecimento psíquico, como corolário de um processo que opera de maneira tão meticulosa quanto implacável.
Sob esses entendimentos, percebo que a violência epistêmica e o assédio moral não são disfunções espontâneas restritas à dimensão interpessoal. São expressões de uma racionalidade de poder que se articula na produção de verdades e na imposição de normas que definem quem merece ser prestigiado e quem deve ser relegado ao ostracismo.
Diante disso, combater essas práticas não é um gesto acessório, nem uma escolha facultativa vinculada à mera promoção da qualidade de vida no trabalho. É dever ético, tarefa civilizatória e compromisso inadiável com a dignidade humana. Isso exige mais do que romper o silêncio. Exige a disposição de desestabilizar as tramas do poder, desnaturalizar as violências e reconfigurar os sentidos do convívio entre pares.
Se é verdade, como ensinou Foucault, que o poder se exerce na produção de discursos que sedimentam a realidade, também é verdade que toda resistência começa na insubmissão ao silenciamento e na afirmação soberana do direito de pensar, de ser reconhecido como sujeito de voz e de dignamente exercer seu trabalho.
Assim, alerto a todos que esta crônica alcançar: narrativas excludentes e práticas que reduzam, silenciem ou deslegitimem o direito à subjetividade, em nome da preservação dos privilégios de qualquer grupo de poder, devem, sem qualquer hesitação, ser objeto de denúncia, com vistas à devida sanção institucional e social.
Caso tais instâncias se revelem insuficientes ou omissas, que essas condutas sejam, com igual rigor, encaminhadas à esfera dos órgãos de controle e do Judiciário, para que se adotem os desdobramentos necessários à devida reparação, na exata medida do dolo praticado e do dano causado.
Luiz Henrique Lima Faria – Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) e Editor-Chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP).
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