Por Ângela Carrato
Começou a valer nesta quarta-feira (6/8) o tarifaço de 50% imposto por Donald Trump a 3.800 produtos brasileiros. Na guerra que desencadeou contra praticamente todos os países, valendo-se de tarifas como pressão econômica, a relativa aos produtos brasileiros é a mais alta e não apresenta qualquer justificativa técnica.
O próprio Trump mentiu na postagem que fez quando, em 9 de julho, anunciou o tarifaço contra o Brasil, pois alegou que o nosso país era superavitário nestas transações. E é exatamente o contrário. Naquele mesmo comunicado, em sua rede social, ele misturou alhos com bugalhos possivelmente para tentar confundir a opinião pública.
Incluiu entre as razões para o tarifaço o descontentamento dele pelo fato de o Judiciário brasileiro estar julgando o ex-presidente Jair Bolsonaro e misturou o Poder Executivo e o STF. Dito de outra forma, Trump tentou se imiscuir nas decisões do STF brasileiro, recolocando em cena a velha atuação imperialista dos Estados Unidos contra qualquer taxação para suas empresas (agora as big techs), que marcaram sua relação com a América Latina e o próprio Brasil durante séculos.
Era de se esperar que reações viessem de todos os setores da vida brasileira, seja pela falta de razão técnica para o tarifaço, seja pelo absurdo de Trump tentar interferir na decisão do STF, que está julgando Bolsonaro com todas as prerrogativas legais para o réu.
No entanto, as reações vieram apenas do presidente Lula, do STF e de setores do movimento social organizado.
Ampliando a truculência contra o Brasil, Trump anunciou que iria se valer da lei Magnitsky para sancionar o ministro do STF, Alexandre de Moraes, responsável pelo processo contra Bolsonaro, por estar “cerceando a liberdade de expressão” e promovendo “caça às bruxas” contra o ex-presidente. A lei Magnitsky, utilizada contra terroristas e traficantes, prevê uma espécie de morte financeira, na medida em que o sancionado fica impedido de fazer qualquer transação com empresas bancárias e financeiras dos Estados Unidos ou que se utilizam do dólar.
Como se isso não bastasse, Trump determinou o cancelamento do visto de viagens para os Estados Unidos de oito dos 11 integrantes do STF brasileiro. Os que tiveram seus vistos preservados – Kássio Nunes Marques, André Mendonça e Luiz Fux – são exatamente os considerados bolsonaristas e muito ligados aos interesses do Tio Sam naquela Casa.
Em qualquer democracia, era de se esperar que os empresários atingidos e a própria mídia saíssem a campo para denunciar o absurdo das decisões de Trump, contribuindo para o fortalecimento da posição do governo Lula e do próprio STF neste momento.
O empresariado atingido está calado ou simplesmente se lamentando.
Já a mídia corporativa tem dado um show de subserviência e vassalagem ao “Império”.
Como estudiosa e pesquisadora da mídia brasileira, tal posição não me surpreende, mesmo que o grau desta vassalagem esteja alguns tons acima do esperado.
Vamos aos fatos.
A posição da mídia corporativa brasileira nas semanas que separam o anúncio do tarifaço e a entrada em vigor da medida vem se alterando substancialmente e pode ser divididas em três momentos distintos.
Tendo em vista a onda nacionalista e de defesa da soberania que as medidas desencadearam em amplos setores da população, ela optou por, inicialmente, uma posição que denomino como “discreta”.
O que isto significa?
O tarifaço foi noticiado, mas sem qualquer referência ao imperialismo estadunidense em relação ao Brasil e com críticas extremamente suaves a Trump e à sua tentativa de interferir nas nossas instituições. Vale lembrar que esta mídia tem ligações mais sólidas com o Partido Democrata. Mesmo assim, sempre é muito obsequiosa com qualquer ocupante da Casa Branca.
O cálculo que os estrategistas desta mídia devem ter feito é o seguinte: não dá para bater de frente com a onda em defesa da soberania nacional que Trump desencadeou. Onda que, associada a outras medidas adotadas pelo governo Lula, fez com que a sua popularidade voltasse a subir.
Depois de meses em que as taxas de aprovação para o terceiro governo Lula estavam negativas, agora há praticamente um equilíbrio entre os que o aprovam e os que o desaprovam. Mais ainda: a tendência é da vantagem positiva para o governo aumentar.
Não faltaram cientistas políticos, sociólogos, juristas e mesmo jornalistas da mídia independente chamando, com ironia, Trump de “companheiro”, por ter explicitado quem tem compromisso com o Brasil e quem apenas usa o Brasil para seus interesses pessoais e familiares.
Lula está no primeiro caso e a família Bolsonaro, seus apoiadores e o próprio Trump, no segundo.
Não falta igualmente quem diga que Trump não só deu um mote para Lula, como facilitou sua reeleição.
Exageros à parte, a última coisa que a mídia corporativa brasileira gostaria que acontecesse é a reeleição de Lula em 2026. Não dizem isso abertamente, temendo a reação do público. Daí os dois outros passos que passaram a adotar em relação ao tarifaço.
Ao contrário de mostrar o absurdo da atuação do Império contra um país democrático e pacífico como o Brasil, esta mídia passou a responsabilizar o governo Lula pelo tarifaço. Daí, denominar este segundo momento de “a culpa é da vítima”. Não faltou nem editorial nos jornalões oligárquicos do Rio de Janeiro e São Paulo defendendo que o Brasil deveria deixar o BRICS ou mesmo responsabilizando ações do governo Lula em política externa (denunciar o genocídio cometido por Israel na Faixa de Gaza) como motivos para as ações de Trump.
Haja vergonha alheia!
É interessante observar que, em momento algum, essa mídia criticou Trump pela evidente interferência na vida brasileira e muito menos colocou os pingos nos is sobre quem é Bolsonaro e os demais réus que estão sendo julgados por tentativa de golpe de estado em 8 de janeiro de 2023. Entre as ações tramadas pelos golpistas estava a morte de Lula, de seu vice, Geraldo Alckmin e de Alexandre de Moraes.
Sempre apostando na memória curta da população e, sobretudo do seu público, esta mídia, aos poucos foi se reposicionando em relação a Bolsonaro. A postura mais evidente neste sentido é a da Folha de S. Paulo, que passou a questionar a legalidade das ações do ministro Moraes e, pior do que isso, utiliza seu espaço editorial e de reportagem para fazer intriga envolvendo o ministro e seus colegas no STF.
Moraes não se abalou e o julgamento de Bolsonaro está marcado para setembro.
Se o Brasil tivesse uma mídia corporativa minimamente digna deste nome, era para estar mostrando como Bolsonaro é apenas mais um fantoche de que se vale o imperialismo estadunidense para tentar dividir e mandar na América Latina.
Trump não está nem aí para o destino de Bolsonaro ou para possíveis apelos de seu filho, Eduardo, um descarado traidor da pátria. Para ele, Bolsonaro não passa de mais um candidato a Juan Guaidó, o lamentável político venezuelano, que se vendeu ao “império” até ser completamente desmascarado e repudiado.
O sonho de Trump e de todos os ocupantes da Casa Branca sempre foi o de manter a América Latina como o seu quintal. Alguns disseram isso expressamente, outros de forma mais sutil. Mas todos agiram contra o Brasil.
kJohn Kennedy, o ainda permanentemente celebrado pela mídia corporativa brasileira, como “democrata por excelência”, já estava com todo o processo do golpe contra o presidente João Goulart engatilhado, quando foi assassinado em 22 de novembro de 1963, no Texas. Seu vice, Lyndon Johnson, apenas deu sequência à trama.
Naquela época como agora, o problema para os Estados Unidos era como impedir que o Brasil se tornasse um país cada vez mais autônomo. Naquela época como agora, os Estados Unidos sabiam que para onde fosse o Brasil, levaria a América Latina, por ser o maior, o mais populoso e o mais rico país da região.
Daí o golpe contra o governo progressista de Goulart, acusando-o de “comunismo”.
Golpe no qual a mídia corporativa teve participação direta, jogando o país numa ditadura que durou 21 anos.
O editorial do jornal O Globo, de Roberto Marinho, em 1º de abril de 1964, tinha como título “Ressurge a Democracia” e os mais de 20 jornais dos Diários e Emissoras Associados, de Assis Chateaubriand, davam “Vivas à Redentora”, ao se referirem ao golpe que derrubou Goulart.
Naquela época como agora era intolerável para os Estados Unidos governos comprometidos com o desenvolvimento de seus países. Essa foi a razão do golpe contra Salvador Allende, no Chile, em 1973, os sucessivos golpes contra Domingos Perón e os peronistas na Argentina, de 1945 aos dias atuais, culminando com a recente prisão política da ex-presidenta Cristina Kirchner, as permanentes ameaças de golpes na Bolívia durante o governo de Evo Morales e os embargos e perseguições aos governos bolivarianos na Venezuela desde 2002.
Se nos anos 1960 o mundo estava mergulhado na Guerra Fria, iniciada pelos Estados Unidos antes mesmo do fim da Segunda Guerra Mundial, a situação agora é bem diferente.
De tantas guerras que patrocinou, de tantos absurdos que cometeu em todos os continentes, e da ganância de sua elite, totalmente dominada pela financeirização e pelo belicismo, os Estados Unidos chegaram à situação em que se encontram: o “Make America Great Again” nada mais é do que uma confissão de decadência.
Daí o desespero de Trump em eleger a China como inimigo e seu principal alvo e de mirar os demais integrantes do BRICS como se ainda mandasse e desmandasse no mundo. A Rússia, por exemplo, está dando de ombros para novas tarifas anunciadas pela Casa Branca e a Índia, cuja tarifa de 25% se deve a comprar petróleo da Rússia, anunciou que continuará a comprar este petróleo.
Se o Brasil tivesse uma mídia minimamente comprometida com o desenvolvimento do país e com os interesses nacionais, era para estar mostrando tudo isso para o seu público.
Mesmo a China sendo, desde 2009, o maior parceiro econômico do Brasil, principal destino de nossas exportações – agro, carnes e minerais – nem assim esta mídia deixa de ser vassala aos interesses dos Estados Unidos.
Vassalagem ideológica, porque desconhece os interesses econômicos e financeiros da própria classe dominante do qual é parte e supostamente porta-voz.
Chegamos assim ao terceiro momento da atuação desta mídia. Momento em curso e que pode ser definido como sendo “tentativa de anistiar Bolsonaro e de jogar a população contra o governo Lula”.
Mas o Grupo Globo não detesta Bolsonaro, podem argumentar alguns!
Não. A família Marinho, como todos os demais oligarcas da mídia corporativa brasileira, detesta quem se identifique com os interesses da maioria da população e defenda a soberania nacional, porque representa o oposto disso.
Getúlio Vargas foi levado ao suicídio em 1954, por, entre outras ações, ter instituído o monopólio estatal do petróleo e criado a Petrobras. Juscelino Kubitschek foi duramente combatido por esta mídia por sua proposta de Panamericanismo, uma espécie de integração latino-americana no final dos anos 1950. Vassala como sempre, ela preferiu a “Aliança para o Progresso”, de Kennedy, que nunca saiu do papel e serviu apenas para esvaziar o que pretendia Juscelino.
Não faltam exemplos no passado e nem em períodos mais recentes.
O golpe travestido de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, em 2016, é um dos mais gritantes exemplos da vassalagem e golpismo da mídia corporativa brasileira, que não mediu esforços para apresentar a presidente como “temperamental, incapaz e terrorista” para desacreditar os seus atos.
Quem se lembra das capas da revista Veja e Isto É daquela época? Quem se lembra das manchetes dos jornais O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo? Misoginia, machismo e mentiras se misturavam em doses cavalares.
A primeira consequência da derrubada de Dilma foi a abertura do pré-sal recém-descoberto para as petroleiras estrangeiras, ao mesmo tempo em que eram isentadas de pagar impostos pelo óleo que exploravam.
O presidente dos Estados Unidos quando desse golpe parlamentar, jurídico, midiático e com o apoio do Tio Sam era ninguém menos do que o democrata Barack Obama.
A mesma mídia que derrubou Dilma foi decisiva para a prisão de Lula a partir da mentirosa Operação Lava Jato. Durante os quase dois anos em que Lula foi perseguido antes de ser preso, nem ele e nem sua defesa tiveram o mínimo de espaço nesta mídia.
Quando, mesmo sem provas, Lula foi preso em 7 de abril de 2018, esta mídia montou uma cobertura que mais parecia um circo. Esperava-se que ali o ex-líder sindical que desafiou as elites locais e o “império” estivesse acabado politicamente.
Ao contrário de Bolsonaro e de seus advogados, que estão o tempo todo dando entrevistas para os jornalões e sendo manchetes nas emissoras de TV e rádio, foi imposto a Lula o mais duro silêncio de que se tem notícia. Nos 580 dias em que esteve preso, além de visitas controladas, foram raríssimas as entrevistas que pode conceder.
Já com Bolsonaro, seus filhos e advogados, a mídia corporativa tem feito uma verdadeira festa. Além de manchetes diárias dando conta de que “o ministro Moraes está cerceando sua liberdade de expressão”, trata com naturalidade os parlamentares oposicionistas do PL que tumultuaram e impediram o início do segundo semestre legislativo na terça-feira (5/8), na Câmara dos Deputados.
Esses parlamentares deveriam perder os mandatos por baderna e tumulto. Mas a mídia tratou o assunto com a naturalidade que interessa aos seus donos.
Já em relação ao governo Lula, esta mesma mídia começa a intensificar a divulgação de informações sobre possíveis prejuízos e desemprego que o tarifaço de Trump pode desencadear.
Mais uma vez, a crítica não é a Trump, mas ao governo Lula. Enquanto a mídia internacional exalta a postura de Lula ao não se curvar à chantagem de Trump, a vassala mídia brasileira esconde o enorme apoio que Lula tem em todo o mundo.
Vale observar que não há qualquer registro na mídia brasileira, por exemplo, do pronunciamento que Lula fez na abertura da reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, na terça-feira (5/8). Qualquer estudante do primeiro semestre de Jornalismo sabe que a fala do presidente da República é sempre notícia, especialmente num momento como este e ao se dirigir aos representantes dos mais diversos segmentos da sociedade brasileira.
Possivelmente esta mídia não tenha gostado da postura firme, mas igualmente ponderada, de Lula e nem do caso que contou envolvendo a vassalagem de empresários brasileiros como Olavo Setúbal em relação ao “império”. O caso aconteceu em 1989, mas serve como uma luva para os dias atuais.
Este terceiro movimento da mídia ora em curso deve se intensificar nas próximas semanas, pois mesmo Lula se colocando, desde o início, disposto a negociar tarifas, mas não a soberania nacional, Trump não deseja negociar. Por isso, essa mídia já tenta colar em Lula o rótulo de intransigente e de responsável pelo que vier a acontecer.
Para quem não se recorda, é bom lembrar que Steve Bannon, conselheiro de Trump, disse com todas as letras que Lula é o político que os Estados Unidos mais devem temer. Ex-integrante do governo Trump, mas igualmente inimigo de qualquer governo soberano, o bilionário Elon Musk, também já anunciou que tudo fará para que Lula perca as eleições de 2026. Posição coerente com a de dono de big tech que a utiliza para controlar e defender seus próprios interesses.
Tudo isso é preocupante? Claro que sim.
A boa notícia é que o Brasil de 2025 não é o de 1954, 1964 ou de 2016. Muita coisa mudou a começar pela presença do BRICS na cena internacional, pelo pertencimento do Brasil a este grupo sinônimo de mundo multipolar, além do inegável declínio do “império” e do próprio descrédito que envolve a mídia corporativa brasileira.
Com as demissões de jornalistas ocorridas nesta semana, o Grupo Globo já deu início ao seu reposicionamento para 2026. A ordem é alinhamento total ao “império”, reabilitar Bolsonaro e minar cotidianamente o governo Lula.
Exagero? Na edição desta terça-feira (5/8), por exemplo, o Jornal Nacional, com cara de quem não quer nada, deu a entender que o tarifaço vai causar mais danos ao Brasil do que a pandemia de covid-19. Em bom português, a família Marinho está criando pânico, culpando Lula e não fazendo qualquer menção de que a taxação foi uma invasão da nossa soberania e, sobretudo, se pautou por motivos políticos.
Como esta mídia golpista e vassala não dá ponto sem nó, todo cuidado é pouco.
As próximas semanas e meses prometem muita tensão, mas minha aposta é de que, desta vez, a democracia brasileira sairá não só vencedora como fortalecida.
Ângela Carrato é jornalista, professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG e membro do Conselho Deliberativo da ABI
*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.