O “império do acaso” é uma das verdades mais difíceis de admitir. Nossa mente é condicionada a colocar os eventos em uma linha de causalidade, a qual nos dá o alívio de olhar para fatos, aprender com eles e repeti-los (ou evitá-los) no futuro. É dessa expectativa que surge a nossa impressionante adaptabilidade ao meio ambiente. Por isso, quando perguntamos a um sujeito de sucesso qual o caminho que ele seguiu para alcançá-lo, a resposta quase sempre será tentar colocar o objetivo alcançado antecedido de uma série de etapas cumpridas, que o levaram, por fim, ao topo. Invariavelmente, sua resposta será um amontoado de clichês e lugares-comuns como “acordei cedo”, “estudei quando todos dormiam”, “tive foco e persistência”, “nunca esmoreci” ou “sempre segui meus sonhos”. Sim, é verdade; ele não sabe a real razão pela qual venceu e atingiu seus objetivos, mas há algo ainda pior nessa equação: muitas vezes seu sucesso é uma brutal casualidade, um produto da sorte, alguém que sentiu o suave bafejar da fortuna, soprado pela deusa Álea – a divindade dos fatos fortuitos.
Entre as coisas ditas com frequência pelas pessoas vitoriosas é o indefectível: “trabalhei e me dediquei muito para chegar onde cheguei”, o que pode explicar alguns detalhes, tipo, “estar pilchado quando o cavalo passar encilhado”, no linguajar gauchesco, que significa estar pronto quando chegar a oportunidade. Todavia, isso não explica a imensa quantidade de pessoas que, com as mesmas capacidades e igual esforço, fracassaram de forma retumbante em seus projetos. O contrário também é verdadeiro: lembro bem de uma declaração do músico Zeca Pagodinho quando afirmou peremptoriamente que “fiz de tudo para implodir minha carreira, mas não consegui”. Chegou atrasado em gravações, faltou em shows, exagerou na bebida, faltou com a palavra, etc. Nada surtiu efeito: apesar do seu enorme esforço, ainda hoje ele é um grande sucesso.
Outro é exemplo curioso aconteceu no futebol. No ano de 2005, o Grêmio estava jogando a série B, e vários treinadores se sucediam, pois nenhum conseguia fazer aquele time jogar. Foi então contratado um jovem técnico que jamais havia treinado um time grande. Inexperiente, mas com muita vontade de vencer (como todo mundo), ele teve um desempenho irregular, até que foi jogar contra um time de Anápolis, em Goiás. Apesar da distância imensa entre a história desses clubes, o Grêmio perdeu por uma sonora goleada de 4 x 0. A diretoria se reuniu para decidir o futuro do treinador. Como já haviam ocorrido muitas trocas no comando técnico, e como o técnico estava há pouco no clube, resolveram lhe dar mais uma chance. Aqui foi seu primeiro golpe de sorte: bastaria um pouco de mau-humor em um membro da direção e ele teria sido demitido.
O Grêmio chegou à final do campeonato cambaleante, jogando mal e não convencendo a torcida e a crítica. Para voltar a série A no ano seguinte teria que, ao menos, empatar sua última partida, que ocorreria no estádio do adversário, clube que também subiria para a elite do futebol brasileiro caso vencesse. A partida foi da mais pura emoção; tensa, disputada, ríspida, com futebol de baixíssima qualidade, mas pura adrenalina. No primeiro tempo, pênalti contra o Grêmio, e a bola se choca contra o poste. O empate continuava a favorecer o time gaúcho. Faltando apenas 10 minutos para o fim da partida, o juiz marca outro pênalti, esse inexistente, contra o Grêmio. O caos se estabelece. Três jogadores gremistas são expulsos na confusão e, somados a um que já havia saído, restaram apenas 7 em campo, contra os 11 adversários. Faltavam 10 minutos, 7 jogadores contra 11 e um pênalti contra: nunca houve um momento no futebol tão desfavorável em uma final.

Um garoto, lateral da equipe da casa, corre para bater o pênalti depois de mais de 10 minutos de brigas, polícia em campo, dirigentes com o dedo na cara do juiz, etc. Bate…. e o goleiro defende. Euforia se mistura com incredulidade, mas é forçoso lembrar que ainda havia dez minutos para jogar e que restavam 11 jogadores adversários contra apenas 7 do time do Grêmio. Passados alguns poucos segundos e o zagueiro adversário bate no jogador do Grêmio e é expulso, e após a rápida cobrança, o jogador Anderson do tricolor gaúcho vence a defesa adversária e faz o gol da vitória. Nada mais poderia acontecer. Apesar de ser um jogo da série B, foi uma comemoração apoteótica, que demonstrou a imortalidade da equipe azul. Sim, para quem conhece, estou falando da “Batalha dos Aflitos”
No ano seguinte, o Grêmio faz um excelente campeonato Brasileiro e se classifica na Libertadores. Quando a jogou no ano seguinte fez a final com o time do Boca Júnior, mas perdeu as partidas decisivas. Depois dessa final o técnico transferiu-se para o Corinthians em 2008, e teve uma carreira de 20 anos de sucesso, atuando em vários clubes brasileiros e vencendo muitos campeonatos.
Se fosse perguntado a ele a razão do seu sucesso, ele certamente diria “muito trabalho, dedicação e estudo”, mas eu sei que isso é apenas uma parte quase insignificante da verdade. As razões desse sucesso estão nas mãos invisíveis do acaso. Se o goleiro do Grêmio não tivesse defendido aquele pênalti, a derrota seria certa, a sua carreira como técnico de grandes times estaria liquidada e ele jamais chegaria à seleção brasileira – como efetivamente chegou. Nos pés do goleiro esteve a sua chance de alcançar o sucesso, e não no trabalho árduo e nas suas capacidades como estrategista, que por certo não seriam muito diferentes daquelas dos técnicos que o antecederam – e fracassaram.
Sim, eu sei o quanto de angústia existe em aceitar que somos governados pelo acaso. Sei também o quanto isso pode nos fazer perder as esperanças no esforço e na dedicação. Entretanto, não é disso que se trata, mas apenas reconhecer que o mérito que procuramos enxergar nas pessoas é muitas vezes enganoso: a posição que ele ocupa em nosso imaginário é muitas vezes fruto de uma confluência de fatores aleatórios dos quais ele não possui nenhum controle, e que as suas qualidades – quando existirem – não são suficientes para explicar a diferença entre o que ele alcançou e a multidão atrás de si que, com as mesmas habilidades, fracassou.
Por isso gosto tanto dessa manifestação de Christoph Waltz ao receber este prêmio. Poderia ter sido piegas, ter falado do seu enorme esforço, ter enumerado suas qualidades e mostrado como seu esforço o fez ser um ator premiado. Entretanto, teve a honestidade de dizer que o lugar que ocupava e o prêmio recebido eram obra 100% do acaso. Só por isso, por ser tão diferente da expectativa, acho sua manifestação uma obra de arte. Veja aqui: