O artigo Cotas trans, de autoria de Sara York, publicado na quinta-feira (19) no portal de esquerda Brasil247, levanta questões sobre as cotas para trans que precisam ser discutidas, pois as limitações dessa política, que já era muito restrita quando aplicada principalmente à população negra, tornaram-se ainda mais evidentes com a adesão do identitarismo a essa causa.
Sara York afirma: “Como pesquisadora e pessoa trans, celebro essa conquista, mas também reconheço que o caminho ainda é longo. A implementação dessas cotas representa um avanço significativo no acesso e na permanência dessas pessoas no ensino superior, uma área que, historicamente, tem sido excludente.” Sim, o ensino superior tem sido de difícil acesso porque sempre foi direcionado essencialmente às classes mais abastadas. Por isso, a política correta é a do ensino público, gratuito e de qualidade para todos.
Queremos dizer com isso que, uma vez que a oferta de educação é escassa, a divisão dessa pequena parte entre setores oprimidos da sociedade não resolve a questão, apenas “distribui a pobreza”, algo que a direita tanto gosta de acusar os socialistas de fazer. Uma política de cotas, ainda que necessária, dada a configuração social do Brasil, não passa de um paliativo.
Historicamente, as mulheres foram o setor social mais impedido de estudar, e não apenas no ensino superior. Por ocuparem uma posição subalterna na produção social de riquezas, principalmente estando presas aos afazeres domésticos, as mulheres apenas recentemente têm conseguido ingresso nas universidades. Alguns setores, como a engenharia, durante muito tempo foram quase exclusivos para os homens.
Uma das queixas de York, e do identitarismo em geral, é a falta de “acolhimento” das instituições públicas. A autora afirma: “Essas políticas afirmativas são fundamentais para garantir que um número maior de pessoas trans consiga ingressar nas universidades, mas também enfrentam desafios estruturais. Como estudante trans e pesquisadora, compartilh[a] as dificuldades vividas por muitos dessa população, especialmente no que diz respeito à adaptação ao ambiente acadêmico. Embora as cotas abram portas, a permanência desses estudantes depende da criação de um ambiente inclusivo, o que ainda é um grande desafio nas universidades.”
Essa queixa, na verdade, é compartilhada por estudantes oriundos da classe trabalhadora. Na Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, nos cursos de período integral, como pode uma pessoa pobre se manter se precisa trabalhar e ajudar na renda familiar? Existe ainda um problema anterior: devido à baixa qualidade do ensino médio, muitos estudantes não conseguem acompanhar os cursos, pois nunca tiveram aulas de Química, Física, entre outras disciplinas fundamentais. Por isso, é necessário exigir um ensino público e de qualidade.
Sobre o chamado ambiente inclusivo, surge a questão de que “a falta de infraestrutura adequada para estudantes trans, como banheiros inclusivos e a adaptação dos registros acadêmicos à identidade de gênero, são problemas recorrentes. Além disso, o preconceito – tanto velado quanto explícito – ainda é um fator que dificulta a permanência e o pleno desenvolvimento dos estudantes trans no ambiente acadêmico.”
Essa questão, porém, frequentemente ignora a insegurança que muitas mulheres sentem ao dividir o banheiro com pessoas do sexo masculino que se dizem identificar com este ou aquele gênero. Embora a preocupação seja legítima, muitas mulheres se calam com medo da censura, do linchamento social e da prática do ‘cancelamento’, pois logo seriam rotuladas de homofóbicas, entre outros rótulos.
A extrema direita aproveitou o caso para conquistar dividendos políticos, dizendo que “grupos de esquerda organizaram uma manifestação em apoio ao estudante que se identifica como transexual”. Também criticou a ingerência do Supremo Tribunal Federal (STF), que, segundo a Gazeta do Povo, teria “estabelecido que, para mudar seus documentos e assumir a identidade do sexo oposto, não é preciso nem de cirurgia de mudança de sexo, nem de tratamento com hormônios, nem de laudo médico atestando disforia de gênero. Basta uma mera declaração da pessoa.”
No caso da estudante da UnB, que se sentiu insegura com uma pessoa de barba no banheiro, os ânimos se voltaram contra ela. Ou seja, os direitos de uma mulher, negra, foram ignorados em função dos “direitos trans”. Isso revela o oportunismo do identitarismo.
Sara York acredita que “a verdadeira inclusão não se limita à ampliação do acesso, mas envolve uma transformação cultural nas instituições de ensino. É preciso criar um ambiente acadêmico onde a identidade de gênero de todos os estudantes seja respeitada e valorizada, e principalmente, não silenciada!” Essa visão, porém, não passa de idealismo.
São os processos sociais que formam as ideias, e não o contrário. Por melhor que uma ideia possa parecer, ela não altera a realidade se não for respaldada por mudanças materiais. O papel do ensino superior para o “aumento da visibilidade” ou da “dignidade” das pessoas trans, ou de quaisquer minorias, depende de outro caminho.
Apenas quando essas pessoas tiverem acesso a empregos e salários dignos, e deixarem de ocupar posições subalternas na sociedade é que poderão conquistar respeito. Enquanto estiverem presas a bicos ou à prostituição, nenhuma tentativa de “educar a sociedade” será mais do que um exercício de demagogia.
Nesse sentido, é preciso também reconhecer a limitação da política de cotas. Uma educação melhor e verdadeiramente democrática, pode trazer melhores oportunidades, mas não se trata de uma questão moral. A política educacional só terá um caráter verdadeiramente progressista e revolucionário se for estendida a toda a sociedade. Por isso, defendemos o livre ingresso nas universidades.