Percival Everett, 67 anos, publicou mais de 30 livros, incluindo Glyph, uma sátira à teoria literária; Telephone, lançado simultaneamente em três versões diferentes; e Erasure, sobre um autor negro que, irritado pelas expectativas de como deveria ser a ficção afro-americana, adota um pseudônimo para escrever um romance parodicamente corajoso. O livro deu origem ao filme Ficção Americana (2023), uma das sensações da última temporada do Oscar e disponível na Amazon Prime Video.

A revista The New Yorker chamou Everett de “moderno, analítico e decididamente original… ele se destaca na prática incansável de ousadias extraordinárias”. Com As Árvores – lançado agora pela Todavia no Brasil –, foi finalista do Booker Prize e do PEN/Faulkner.

O livro é uma novela policial retorcida, centrada numa série de assassinatos terríveis e aparentemente sobrenaturais de pessoas brancas ocorridos no Mississippi. À altura do lançamento de As Árvores no Reino Unido, Everett falou ao Observer de Los Angeles, onde leciona na Universidade do Sul da Califórnia.

O que o levou a escrever um romance sobre linchamentos?
Percival Everett: Concluí o texto pouco antes do início da Covid-19. Estava trabalhando nele havia um ano, mas a ideia era algo que rondava a minha cabeça o tempo todo. O núcleo da narrativa era uma música: o cantor country Lyle Lovett fez uma versão da tradicional canção Ain’t No More Cane, de Bob Dylan, e combinou-a com outra música, chamada Rise Up. Certa manhã, estava escutando essa canção antes de ir jogar tênis e pensei: “Ah, aí está o meu romance: e se todo mundo “se levantasse”? Tornou-se uma espécie de ideia zumbi, mas eu não gosto de zumbis, então a história se transformou no que se transformou. Embora eu raramente diga o que qualquer um de meus romances significa, uma coisa que considero verdadeira é que há uma distinção a ser feita entre moralidade e justiça: e a justiça pode nem sempre parecer moral para nós. E esse pensamento é assustador.

As Árvores. Percival Everett. Tradução: André Czarnobai. Todavia (352 págs., 84,90 reais)

Como você escolheu o tom frequentemente cômico do livro?
Percival Everett: Seria muito fácil escrever um romance sombrio e denso sobre linchamentos que ninguém leria. Na literatura, tem de haver um elemento de sedução. O humor é uma ferramenta fantástica. É possível usá-la para as pessoas relaxarem e, a partir daí, você pode fazer o que quiser com elas. O absurdo da desatenção em torno do assunto foi a força propulsora da comédia, mas minha novela tanto gira ao redor de estereótipos quanto revela a verdade do linchamento. Fico feliz em dizer que irritei muitas pessoas com meu estereótipo dos personagens brancos. Alguém, numa entrevista, fez alguma objeção sobre isso e minha resposta foi: “Bom, como você se sente?” Quando comecei o livro, disse para minha mulher (a escritora ­Danzy Senna): “Não estou sendo justo com os brancos”, e então eu disse: “Ora, foda-se!” Simplesmente, fiz o que quis.

Em vários pontos, o romance dá informações aos leitores que não conhecem a história. Você achou isso necessário?
Percival Everett: É preciso fazer isso: os Estados Unidos têm um grande talento para esconder suas próprias transgressões. Meus alunos (na Universidade do Sul da Califórnia) têm muito pouco conhecimento da Guerra do Vietnã, por exemplo. Se eu quiser falar com eles sobre isso, tenho de desvendar os códigos do período. Dou um curso sobre cinema do Oeste americano. Dez anos atrás, todos os meus alunos tinham visto algum tipo de faroeste. Hoje, creio que não há um único aluno, entre os meus 20, que tenha visto um faroeste. Toda a mitologia cultural presente no Oeste americano, aquilo que seus pais leram quando cresceram, não está disponível para eles. Por isso, estão aprendendo de novo.

“Fico feliz em dizer que irritei muitas pessoas com meu estereótipo dos personagens brancos”

Sua sátira das expectativas racistas da cultura literária, em Erasure, ainda fala fortemente, mais de 20 anos depois, a jovens escritores negros como Brandon Taylor, que apresentou sua recente reedição. Isso é desanimador?
Percival Everett: Quando publiquei meu primeiro romance, Suder (1983), sobre um jogador de beisebol, lembro-me de um artigo que dizia: “Onde estão os ­outros escritores negros?” Os escritores com os quais me associo são todos 15 anos mais velhos – John Edgar Wideman, ­Charles Johnson, Clarence Major –, então realmente havia uma escassez. Agora, quando vejo o trabalho de escritores como Mat Johnson e Victor LaValle, percebo um escopo mais amplo. Mas lembre-se que estamos falando de ficção literária nos Estados Unidos. Se você vende 20 mil livros, é fantástico. Se eu fosse músico e vendesse 20 mil unidades, nunca mais gravaria. A forma como você marca a cultura (como escritor) é completamente diferente. Isto, sim, é desanimador.

Você conheceu o escritor experimental Robert Coover na Universidade Brown nos anos 1980. Ele o influenciou?
Percival Everett: Nunca estudei com ele, embora nos tenhamos tornado amigos e continuemos sendo. Ele ainda trabalha (aos 92 anos) e está, intelectualmente, em constante movimento, o que é uma constante inspiração para mim. Muitos romancistas experimentais experimentam apenas por experimentar, mas, se isso não acrescenta significado, não me interessa. O único motivo pelo qual cheguei a esta forma de arte é porque me interessa brincar com o modo como se constrói o significado. Meu agente disse: “Você poderia ganhar muito mais se escrevesse o mesmo livro algumas vezes”. Não sou capaz disso, mas adoraria escrever um romance que todos odiassem. “Você leu o novo romance de Percival?” “Cara, eu odiei.” “Eu também!” •

Publicado na edição n° 1316 de CartaCapital, em 26 de junho de 2024.

Categorizado em:

Governo Lula,

Última Atualização: 01/07/2024