O guarda-roupa da condessa

por Walnice Nogueira Galvão

Os proustianos  aplaudiram quando o guarda-roupa daquela que serviu de modelo para a duquesa de Guermantes foi aberto à  visitação pública, no Musée de la Mode de la Ville de Paris, que fica no Palais Galliera.

Hoje desconhecida, quem teria sido essa mulher? Por nascimento princesa de Caraman-Chimay, belíssima e elegantíssima, mas sem fortuna, casou-se com o conde Greffügle. Este, além dos títulos de alta nobreza, era miliardário, e foi aí que ela começou sua carreira mundana. Por contraste, basta observar a grosseria e a vulgaridade do marido.

Mas são tantas roupas que não é possível exibi-las todas ao mesmo tempo. Foi preciso fazer uma primeira seleção, que resultou num  esplêndido catálogo, por título La mode retrouvée – Les robes trésors de la comtesse Greffugle.

A coleção  brilha pela opulência. Foram ao todo 8 doações ao longo de décadas, vindas de diferentes doadores. Há até lotes de librés de criados. São trajes de gala, pelerines, luvas, chapéus, regalos, leques, vestidos de receber em casa,  capas e capinhas, mantôs, xales, peliças, sapatos, meias, bolsas…Worth e Fortuny, os maiores costureiros do mundo de então, eram os  prediletos, bem como o fotógrafo Nadal.

Mas ainda assim é difícil dar uma ideia, tal a profusão de sedas, veludos, rendas, brocados de fios de ouro e de prata. Certos trajes trazem barras de zibelina ou arminho ou outra das mais raras peles existentes. Acessórios comportam plumas de avestruz e egretes de garça. Há até um traje que a condessa usou no casamento da filha na Igreja da Madeleine, que ostenta um diamante de verdade num toucado de plumas de ave-do-paraíso, que despedia lampejos iridescentes a cada movimento de sua portadora.

Acontece que Proust, e já que ficção não é jornalismo, no processo literário habitual de juntar traços de várias pessoas para criar uma só, ou então, ao contrário, dispersar traços de uma só pessoa por várias personagens, acabaria por desagradar à condessa, que renegaria a amizade entre ambos.

A condessa era uma pessoa séria e se tornaria não só mecenas como também árbitra do gosto (arbiter elegantiarum, como Petrônio), nunca deixando faltar seu apoio às artes e às ciências, entre elas seu conhecido patrocínio da ópera. Todavia, uma causa do tempo lhe daria notoriedade: o caso Dreyfus.

Acusado de ter vendido documentos militares secretos ao inimigo, o capitão Dreyfus seria julgado por traição. Ainda ardia nos franceses a derrota na guerra franco-prussiana, de modo que a opinião pública condenava o capitão. Seu julgamento em Paris se tornaria um entretenimento obrigatório, um programa social, como mostra Proust, e todos tomavam partido.

Anos depois e contando com paladinos incansáveis, revelou-se a trama em que outro oficial vazara os papeis e acusara falsamente Dreyfus, que seria finalmente absolvido

Ora, a condessa, mulher de caráter, ao contrário de sua classe social em peso, seria uma dreyfusarde, coisa rara entre seus pares, como registra Proust.

E Proust, na argamassa de sua ficção, tendo passado para a duquesa de Guermantes inventada as altas qualidades da condessa Grefülhe, juntou-lhes defeitos. De modo que a duquesa inventada, copiada da vida real, revelou péssimas qualidades de arrogância de classe, por exemplo, que ele pegou em outras damas da época. Entre esses defeitos,  o pior é que, por coerência, ele transformou sua personagem em adversária de Dreyfus. Imperdoável. A rusga pode ser acompanhada no livro de Anne Cossé-Brissac, La comtesse Grefülhe.  

Quanto à preservação dos legados proustianos, acrescentou-se este do Palais Galliera ao já existente no Museu Carnavalet, onde fica o quarto de Proust perfeitamente conservado, o célebre quarto em que ele por vários anos escreveu a Recherche  deitado em sua cama de asmático, entre duas fumigações. Assim, agora são dois os acervos proustianos em Paris, o novo contendo toaletes que Proust descreveu minuciosamente e o leitor reconhece. E não muito longe há outro. Basta percorrer de trem os 100 km que separam Paris de Illiers-Combray.Na casa de Tante Léonie estão preservados móveis e outras coisas. Pode-se até saborear madeleines na lojinha de suvenirs.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 26/05/2025