O gozo do extermínio – o desejo autoritário diante do genocídio
por Eliseu Raphael Venturi
Há perguntas que não deveriam precisar ser feitas. Mas são justamente essas que exigem ser formuladas. O desejo autoritário goza o genocídio? Não como uma exceção monstruosa, não como aberração moral, mas como expressão lógica e obscena de sua própria estrutura?
Responder exige cuidado. Porque o genocídio — a destruição deliberada, calculada e simbólica de um grupo — não é apenas um dado histórico ou jurídico. Ele é a encarnação extrema do gozo autoritário: quando o poder não mais deseja governar, mas devorar. Quando já não busca ordenar a vida, mas purificá-la do outro, da diferença, da alteridade insuportável. O genocídio não é só a morte em massa: é a pulsão de aniquilar o que, pela simples existência, lembra ao regime que ele não é absoluto.
O autoritarismo, em sua economia libidinal, não deseja o bem-estar coletivo. Deseja o controle total. E onde o controle vacila, onde há um corpo fora da norma, uma voz dissonante, um traço de diferença que não se dobra, ali surge o objeto de gozo perverso. Lacan nos ensinou: o gozo não é prazer. É uma experiência fora do princípio do prazer, fora da utilidade, fora da troca simbólica. O gozo é o que transborda, o que insiste, o que violenta. O desejo autoritário goza onde o outro morre — porque só nesse ponto o outro não retorna, não ameaça, não lembra ao poder sua própria castração.
Genocídio, então, é o limite absoluto da captura do desejo pelo autoritarismo. Não se trata apenas de eliminar o outro; trata-se de eliminar o símbolo do que o outro representa. Deseja-se que não reste nem o nome, nem a memória, nem o vestígio. E nesse apagamento totalitário, há gozo: um gozo frio, maquinal, funcional — como o dos protocolos que organizam campos, bombardeios, listas, silêncios.
Mas por que o desejo autoritário goza assim? Porque ele odeia o desejo do outro. Odeia o desejo que escapa, que não se submete, que inventa, que se inscreve na linguagem sem pedir licença. E como não pode simbolizá-lo, tenta destruí-lo. O genocídio é o fracasso da política convertido em espetáculo necropolítico. É a falência da escuta que se transmuta em surdez radical. É o desejo convertido em gozo pela morte. Um gozo que não se sacia, porque sua lógica é repetitiva, aditiva, fetichista: quanto mais se mata, menos o desejo se aquieta.
A perversão do autoritarismo é que ele não mata por necessidade, mas por estrutura. Quando já não há mais justificativa econômica, nem segurança, nem revanche a ser feita, o autoritarismo ainda mata. Porque o gozo que o sustenta não cessa. Ele precisa de um outro a ser eliminado — seja o imigrante, o negro, o judeu, o palestino, o indígena, o dissidente, o queer — para continuar funcionando. A máquina gira sobre cadáveres, mas não se sacia com eles. O genocídio é seu orgasmo cínico e interminável.
Por isso, quando se naturaliza o genocídio, quando se o justifica, quando se relativiza ou se relativiza a dor das vítimas, o que está em jogo não é apenas a ignorância. É a cumplicidade com o gozo. É a escolha ativa de desejar com o opressor, de se identificar ao ponto de querer a mesma extinção do outro. Essa é a verdadeira obscenidade: quando o desejo de eliminação vira laço social. Quando a empatia é substituída pela identificação com a arma.
O que o genocídio escancara — e é isso que o torna insuportável à civilização — é que o desejo pode sim desejar o fim do outro. Que o humano pode gozar em ver o outro morrer. E é essa verdade que o direito, a moral e a política tentam incessantemente recobrir com rituais, sanções, eufemismos. Mas a psicanálise sabe: o desejo não é bom por natureza. Ele é ambivalente. E por isso precisa ser atravessado, escutado, responsabilizado — não reprimido ou moralizado. Porque quando o desejo é apenas recodificado pelo poder, ele pode facilmente virar gozo fascista.
A pergunta que resta não é se o desejo autoritário goza o genocídio. Mas se ainda há desejo que se recuse a gozar com ele. Se ainda há um desejo que não se rende à eliminação do outro, mas que resiste à sua maneira — sustentando a escuta, o vazio, a travessia. Um desejo que, diante do horror, não se satisfaz, mas se levanta.
Porque o que nos diferencia do autoritarismo genocida não é termos desejos puros — é não gozarmos com a destruição do outro. E é só a partir daí que a política, a justiça e o amor ainda podem significar algo.
Eliseu Raphael Venturi é doutor em direito.
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