O golpe híbrido
por Guilherme Scalzilli
A esquerda apega-se a interpretações rudimentares dos planos golpistas que culminaram nos ataques de oito de janeiro de 2023. A extensa bibliografia acadêmica sobre “guerra híbrida” ilustra a complexidade que as análises predominantes deixam de buscar.
Mas não precisamos explorar esse conceito em profundidade. É suficiente deixá-lo como referência para uma abordagem dos fatos que se aproxime do raciocínio estratégico ou, pelo menos, que respeite a sensatez característica da inteligência militar.
Pois duvido que um tenente-coronel deleuziano bem informado tivesse ilusões sobre o futuro do golpe bolsonarista. Não porque o projeto fosse naufragar, pelo contrário. Seu êxito, além de previsível, seria institucionalmente catastrófico para as Forças Armadas.
Quaisquer cenários do novo regime envolviam crises domésticas e externas de efeitos incertos e uma redemocratização com viés punitivo e reformista. O sucesso imediato da sublevação levaria, em curto ou médio prazos, a um revés histórico do campo militar.
A simples realização do processo eleitoral mostra que essa leitura vingou. Se a recusa à ideia de abortá-lo fosse legalista, não estratégica, teria barrado também as sabotagens, os conluios assassinos e a “festa da Selma”, que os arapongas decerto monitoraram.
O desfecho da aventura revelou que lado da cizânia interna tomava as decisões efetivas. Ponto fundamental da questão: a tentativa de golpe nasceu frustrada porque os setores que poderiam viabilizá-lo não o desejavam. E só nasceu porque eles permitiram.
É que o impulso criminoso de Bolsonaro gerava oportunidades irresistíveis. Primeiro, atentados, acampamentos e invasões serviriam como grande exercício de logística, psicologia e mobilização digital. Um verdadeiro banquete para a inteligência militar.
Além disso, havia o potencial destrutivo das manobras finais em Brasília. O peso simbólico do vandalismo, inclusive junto às tropas, era algo que os comandos de ambas as facções nunca desperdiçariam. Especialmente sabendo que ficariam impunes.
Por fim, a desmoralização dos golpistas torna os oficiais “democratas” hegemônicos na cúpula militar e no próprio governo federal. Viram fiadores da estabilidade, controlando as temperaturas internas e protegendo as instituições contra o bolsonarismo raivoso.
Eis a resposta ao enigma dos privilégios concedidos por Lula às Forças Armadas. Nesse ambiente, não vale a pena majorar expectativas com os inquéritos sobre a regência do golpe. Na melhor das hipóteses, eles pouparão o corpo submerso de um vasto iceberg.
A anistia do primeiro escalão militar vem sendo costurada há meses, e é tolice achar que Lula pode ou deseja impedi-la. Mesmo o que hoje parece inevitável depende de certos cálculos: a prisão de Bolsonaro compensaria uma GLO para deter seus mentecaptos?
Típica figura da cartilha “híbrida”, a crença numa vitória que não houve é capitulação inconsciente, passiva, que materializa o triunfo dos adversários sem o desgaste de um confronto aberto. A narrativa do predomínio judicial bloqueia a percepção da derrota.
Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Mestre em Divulgação Científica e Cultural, doutor em Meios e Processos Audiovisuais. Website: www.guilhermescalzilli.blogspot.com
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “