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O golpe do semipresidencialismo

por Luis Felipe Miguel

Em 1993, um plebiscito cuja realização tinha sido prevista na Constituição decidiu a forma e o regime de governo no Brasil.

Eu votei no parlamentarismo. Hoje sei que estava errado.

Como modelo abstrato, o parlamentarismo pode mais bacana do que o presidencialismo, que tem uma concentração de poderes algo monárquica. No caso brasileiro, com o circo de horrores que é o Congresso, não parece uma boa alternativa. Não temos o mínimo necessário para começar a pensar em parlamentarismo: um conjunto de representantes que pelo menos finja que não é corrupto, um mínimo de responsividade diante dos constituintes, partidos com alguma densidade programática.

A visibilidade maior da eleição presidencial permite pelo menos sonhar com uma escolha um pouco mais esclarecida.

Em suma, o velho Brizola tinha razão. Para um país tão atrasado e tão necessitado de mudanças como o Brasil, o presidencialismo é mais recomendável.

Meu primeiro artigo publicado em uma revista científica foi sobre a campanha para o plebiscito. Relendo-o, vejo que já percebia o ridículo da campanha do parlamentarismo, centrada no mantra ingênuo, cafona e enganador do “muitas cabeças pensam melhor do que uma”.

O parlamentarismo foi derrotado no plebiscito, mas volta à baila de vez em quando – sempre que o PT está no governo. O que impede uma decisão definitiva em favor dessa saída não é algum prurido democrático, mas o efeito da eterna mosca azul, que faz com que tantos sonhem com o Palácio do Planalto, mesmo contra todas as evidências.

Afinal, no Brasil, há muitos políticos que são a perfeita encarnação daquela personagem do argentino Macedonio Fernández: “El hombre que será Presidente y no lo fue”. Gente que passa a vida “pensando naquilo”, como dizia um antigo bordão de sketch humorístico, mas nunca chega lá. Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Paulo Maluf, José Serra, Ciro Gomes, o próprio Brizola… a lista é grande.

Helena Forde, ilustração para The mammals of Australia, de Gerard Krefft (1871)

Em 1961, o parlamentarismo foi implantado como fruto de um golpe. As Forças Armadas vetaram a posse de João Goulart na presidência, com todos os poderes legais que a Constituição lhe granjeava. Para impedir uma quartelada, chegou-se a uma “solução de compromisso”. Como sabemos, a concessão não evitou a ditadura, apenas adiou-a por alguns poucos anos.

A mudança do regime, hoje, seria um novo golpe. Eliminaria o único momento de nossa vida política em que alguma coisa próxima de um projeto de nação é submetido à apreciação popular, que é a eleição presidencial. E revogaria uma decisão expressa do titular nominal da soberania, o povo, tal como definida em 1993. No mínimo, seria necessário convocar um novo plebiscito. Mas aí o parlamentarismo seria derrotado, quase com certeza.

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Mas o que está na mesa hoje não é o parlamentarismo, mas um “semipresidencialismo”, no qual conviviriam um presidente eleito diretamente e um primeiro-ministro escolhido pelo Congresso, dividindo poderes e responsabilidades.

Quem alavanca a proposta é Hugo Motta, aquele que foi eleito presidente da Câmara dos Deputados com o apoio de Lula e hoje defende anistia para os golpistas.

O semipresidencialismo é um ornitorrinco institucional (sem nenhuma ofensa ao simpático monotremado). Seu resultado mais lógico é o aumento da instabilidade política.

Concordando com esse veredito, o colunista da Folha, Hélio Schwartsman, sinaliza que a ideia pode, ainda assim, ser boa, porque seria capaz de “tornar os parlamentares mais responsáveis por suas ações”.

Não creio que seria esse o efeito do modelo proposto por Motta, caso fosse aprovado.

O grande objetivo da maioria dos parlamentares brasileiros hoje é controlar a maior fatia possível do orçamento público, para os fins que já conhecemos. Não há, por parte deles, nenhum interesse em dirigir a sociedade.

Se fosse isso que eles quisessem, estariam pensando no parlamentarismo puro e duro.

O semipresidencialismo aumenta seu poder de chantagem e dribla as restrições ao sequestro do orçamento que o Supremo começou a impor, por iniciativa de Flávio Dino. Ao mesmo tempo, mantém um presidente da República como símbolo da autoridade executiva e pára-raio para todo o desgaste da ação governamental.

Independentemente do que diga a letra da proposta, o que Hugo Motta deseja, na prática, é simples.

Em tramitação, o projeto do semipresidencialismo aumenta a pressão sobre o governo e o leva a ceder mais e mais. Caso aprovado, garante ao Congresso um naco de poder direto, sem intermediários, do Executivo, ao mesmo tempo em que mantém a figura do presidente como responsável último pela gestão do país.

Sim, eles teriam que gerir por conta própria uma parte do butim, o que poderia causar tensões internas – não daria para culpar o Padilha ou o Rui Costa por eventuais problemas. Mas tudo indica que acabariam se acertando, como mostram as quase-unanimidades que em geral alcançam, quando são seus intere$$es que estão em jogo.

Mas isso levaria a mais compostura? Inibiria a drenagem de recursos públicos para currais privados – como a recente revelação de que a Infraero, controlada pelo Republicanos de Hugo Motta, destinou 25% de suas verbas de patrocínio de eventos para a pequena Patos, cidade do interior da Paraíba, estado no qual ela não administra nenhum aeroporto? Faria com que houvesse alguma preocupação, ainda que mínima, com o resultado das políticas adotadas?

Difícil.

Temos um Congresso que a cada eleição se mostra mais retrógrado, mais corrupto e mais desqualificado intelectualmente. Os deputados e senadores que possuem um mínimo de pudor (nem estou falando de ética) e de compromisso com o país não são apenas uma minoria: são uma minoria isolada, incapaz de exercer liderança sobre a massa de parlamentares negocistas e cínicos. O Congresso não possui credibilidade para assumir mais poderes.

E, de fato, nenhum dos nossos problemas políticos principais se resolve nesse nível de engenharia institucional. Parlamentarismo ou presidencialismo, voto distrital ou em lista: discussões importantes, mas menos importantes do que reduzir o poder do dinheiro na política, pluralizar os meios de comunicação, controlar as big techs, ampliar os espaços de participação popular direta, reforçar a fronteira entre religião e política.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

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Last Update: 12/02/2025