A dupla vitória no Congresso, na terça-feira 20, renovou a esperança do governo de se fortalecer politicamente para a grande batalha que se aproxima, a da taxação dos ricos, beneficiados por uma das legislações mais favoráveis do mundo ao acúmulo sem limites. No Senado, o governo aprovou a retomada gradual da tributação sobre a folha de pagamento das empresas de 17 setores, desoneradas desde 2011. Uma reunião de representantes dos Três Poderes restabeleceu a vinculação das emendas parlamentares com as políticas públicas, depois de o Supremo Tribunal Federal referendar, de forma unânime, uma decisão do ministro Flávio Dino e impor limites à farra dos congressistas.
Segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, pela primeira vez o Congresso Nacional compensa uma desoneração e o gesto configura “um avanço institucional muito importante”. A próxima missão do ministro, de encaminhar a segunda parte da reforma tributária, sobre a renda e o patrimônio, consiste, entretanto, no maior desafio da sua gestão e requer novos avanços institucionais. O objetivo é acompanhar o que fazem os países avançados e muitos outros fora desse grupo e retirar o Brasil da vergonhosa posição de conceder liberdade quase irrestrita aos ricos em relação ao sistema tributário. Como resultado dessa complacência, iniciada no governo FHC, a partir da falsa crença de que quanto mais dinheiro sobrar no bolso de quem ocupa o topo da pirâmide, maior será o benefício para os demais integrantes da sociedade, o 0,1% mais rico abocanha entre 12% e 14% da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres ficam com 11%, mostra estudo do economista Sergio Wulff Gobetti, técnico do Ipea. Entre 2017 e 2022, o rendimento dos 5% da população com ganho médio mensal de 19,6 mil reais aumentou 51% e aquele dos 95% com média mensal de 1,7 mil reais cresceu 33%. A renda mês a mês do 0,01% mais rico, estimada em 1,11 milhão de reais, quase dobrou no mesmo período, com uma elevação de 96%, segundo estimativas do Observatório de Política Fiscal do Ibre/FGV.
Para deixar de ser um arremedo de “paraíso fiscal”, o Brasil precisa tributar juros, dividendos e juros sobre o capital próprio. “O País é um dos poucos que chegaram ao ponto de instituir a isenção de lucros e dividendos distribuídos em 1996, seguindo o caminho da pequena Estônia e de mais alguns países do Leste Europeu. É uma jabuticaba tributária, porque nenhuma economia relevante hoje tem isenção para lucros e dividendos tributados na pessoa física”, ressalta Gobetti. O México e a Grécia, na periferia da Europa, chegaram a ter essa isenção, mas a aboliram. Os Estados Unidos nunca deixaram de tributar lucros e dividendos.
A retirada, na última hora, da proposta de elevação de 15% para 20% do Imposto de Renda Retido na Fonte sobre os Juros sobre Capital Próprio do texto do projeto de tributação gradual sobre a folha de pagamento, aprovado na terça 20 no Senado, é, porém, uma amostra do que Haddad terá de enfrentar na tentativa de tributar os ricos. O governo avançou sobre a tributação indireta, do consumo, na primeira parte da reforma tributária, aprovada em 2023, que cria dois impostos sobre o valor adicionado, um ponto quase consensual entre os diversos setores da sociedade, mas as mudanças praticamente não alteram o caráter regressivo do sistema, ressalta o economista Pedro Garrido da Costa Lima, consultor legislativo. Alguns mecanismos, como o cash back e as reduções de tributação sobre a cesta básica, produzem algum efeito em favor da progressividade, pois a redução da tributação indireta é proporcionalmente melhor para os mais pobres. Isto é um lado, mas não o principal objetivo da primeira fase, focada sobretudo na eficiência, produtividade, racionalização e simplificação do regime de impostos.
Outro ponto é que, com o fim da cumulatividade e maior possibilidade de compensar os créditos tributários ao longo da cadeia, haverá uma melhora substancial, principalmente para os setores com cadeias de valor mais longas, como o industrial, e redistribuição da carga tributária. Teria, portanto, um impacto redistributivo setorial. Isso em tese, pois, com a possibilidade de surgirem ramos com tributação reduzida em serviços, cria-se uma certa interrogação sobre como essa carga será de fato redistribuída.
A segunda fase, a da tributação sobre a renda, é muito importante por atacar as distorções do Imposto de Renda sobre a distribuição de lucros e dividendos, que desde 1995 são isentos, benefício aproveitado, em sua maioria esmagadora, pelos muito ricos. Além de constituírem um incentivo à “pejotização”, isto é, a criação de uma pessoa jurídica para receber salário via distribuição de lucros e dividendos, isenta de impostos. Essa reforma visa ainda os fundos exclusivos, que também não são tributados no Brasil.
Na PEC 132, da reforma tributária, sublinha Lima, já se previa que o governo enviaria a parte da taxação da renda e do patrimônio em até 90 dias, por meio de um Projeto de Lei para discutir o Imposto de Renda. Não mandou, mas existem muitas propostas legislativas em tramitação que podem ser utilizadas. Entre elas há um projeto encaminhado pelo ex-ministro Paulo Guedes, que taxa lucros e dividendos, fundos exclusivos e offshore, sem preocupação com a progressividade, mas com finalidade arrecadatória. Várias medidas que provocavam gastos fizeram menção a esse Projeto de Lei de Imposto de Renda, que nunca foi aprovado, mas virou uma espécie de cheque, de compensação no Imposto de Renda. Haddad afirmou que a equipe econômica encaminhou ao presidente Lula algumas opções de projeto e caberá ao presidente escolher o mais apropriado para mandar ao Congresso.
A retirada do aumento do imposto sobre os Juros sobre Capital Próprio de projeto aprovado no Senado mostra em que banda toca o Congresso
A questão dos fundos offshore foi resolvida pelo governo atual, que conseguiu aprovar a medida no Parlamento. Resta a taxação de juros e dividendos, dos juros sobre capital próprio. “E tem uma taxação que é importante”, acrescenta o consultor legislativo, “feita durante o primeiro governo Lula, em 2006, que isentou do Imposto de Renda o rendimento de títulos brasileiros auferidos por estrangeiros. O contribuinte brasileiro paga imposto, mas o estrangeiro não paga. Isso também é uma forma de desigualdade e de remessa de lucros para o exterior.”
Algumas propostas em tramitação podem ser utilizadas, conforme mencionado acima, a depender da articulação política do governo, para fazer avançar essas medidas. A tendência é haver uma grande resistência no Congresso em relação à tributação sobre a renda, em especial a empresarial, pois o Legislativo é formado por muitos parlamentares associados a empresários de setores que se beneficiam com as desonerações.
Determinadas desonerações, que beneficiam a classe média alta, como aquelas sobre saúde, têm um impacto relevante sobre o total dos desencargos. “Se essas isenções fossem aplicadas em recursos para a saúde pública, teriam um impacto muito elevado sobre a desigualdade”, destaca Lima. Os abatimentos de despesas médicas na declaração de 2023 totalizaram 24,3 bilhões de reais e para este exercício há uma projeção de 26,7 bilhões de reais.
Uma dificuldade adicional é que o corte da desoneração não é suficiente para fazer com que o dinheiro que deixava de ser arrecadado vá direto para uma política social, pois, quando há uma meta de superávit fiscal dentro do arcabouço, essa redução da desoneração pode ir diretamente para o superávit primário e não para uma política pública. Há ainda um componente meritório, a redução de impostos para pequenas e médias empresas. “A preocupação da inclusão social, trazida pela discussão da progressividade, não pode ficar para trás”, ressaltou Márcio Gimene, presidente da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento, em seminário sobre reforma tributária progressiva e redução das desigualdades, organizado no Congresso pelos conselhos federal e paulista de economia e pela associação dos consultores legislativos. A reforma tributária sobre renda e patrimônio, prosseguiu Gimene, é um tema sobre o qual o campo progressista em geral tem acordo quanto à importância de se avançar, mas na hora de implementar há muitas resistências, em grande medida porque as elites querem serviços de Primeiro Mundo, mas não concordam em contribuir pagando impostos sobre propriedade e renda, como fazem os países avançados, ressaltou.
Outro aspecto importante a ser considerado, segundo Gimene, é o modelo federativo peculiar no Brasil. Os federalismos em geral têm dois níveis, a União e o Estado, enquanto no País há três níveis com autonomia, sendo que alguns tributos importantes do ponto de vista da arrecadação sobre patrimônio estão sob a responsabilidade de entes subnacionais, muitos dos quais, em especial os municípios menos estruturados, sem capacidade administrativa para fazer frente às pressões locais, principalmente no que se refere à arrecadação do imposto sobre propriedade rural, e mesmo sobre propriedade urbana.
A economista italiana Clara Mattei, professora da New School of Social Research, de Nova York, destacou durante o seminário o fato de que impostos regressivos são acompanhados de cortes em gastos sociais e por isso é importante combater esse tipo de tributação. Acrescentou que não se trata de o Estado gastar menos, mas de não realizar gastos sociais enquanto subsidia grandes investidores. “Isso é importante porque não se trata apenas de que os trabalhadores pagam mais impostos, mas de que os impostos pagos por esse setor da população não vão na direção de programas como o Bolsa Família, mas são usados para subsidiar investidores, enquanto retira recursos de modo permanente do bem-estar social em educação, saúde e outras áreas. “Precisamos entender que essa austeridade fiscal não está isolada, mas conectada à austeridade monetária, aos aumentos da taxa de juros que os Bancos Centrais têm praticado no mundo, e o Banco Central do Brasil é um caso extremo de alta taxa de juros. Neste caso, o que se vê é que, uma vez mais, os ricos não tributados fazem dinheiro emprestando seu capital ao Estado por taxas de juro extremamente altas”, ressaltou a economista.
O sistema tributário é uma das causas da perpétua desigualdade social, na qual o Brasil figura entre os campeões mundiais
Isac Falcão, presidente do Sindifisco, sublinha o fato de que “a desigualdade é o problema que notabiliza o Brasil no mundo. Lucro e dividendo não são tributados, juro sobre capital próprio é subtributado. Estamos muito próximos do pódio e temos essa posição vergonhosa no ranking”. A Constituição situa, entretanto, a igualdade como um valor supremo e a redução das desigualdades é considerada um dos objetivos fundamentais da República. A Constituição deixa claro, lembra Falcão, que a tributação deve ocorrer conforme a capacidade contributiva, mas, apesar disso, os trabalhadores pagam imposto e os beneficiários de lucros e dividendos não pagam.
Há um otimismo moderado, ainda assim sujeito a reviravoltas, quanto a alguns tópicos da reforma tributária da renda e do patrimônio, acredita o consultor legislativo Marcelo Sobreiro Maciel. O primeiro deles, diz, é o destaque atual do tema da progressividade tributária, totalmente ausente até pouco tempo atrás, a partir de um revisionismo teórico, da mudança de paradigmas e da influência de estudos de economistas sobre o assunto. Quanto à tributação sobre herança, propriedade, há alguns sinais positivos, ainda que discretos. “O grande avanço que se teve foi a aprovação da lei da tributação de fundos exclusivos e offshore, em 2023”, ressalta Maciel. Outras reformas aprovadas que vão na mesma direção envolvem a questão do preço de transferência ou transfer pricing, para combater a manipulação de preços de insumos e serviços transacionados entre subsidiárias e matrizes de multinacionais para fugir à tributação, e a da subvenção do ICMS, que tornou mais rigorosos os requisitos para não tributação de benefícios fiscais e aumentou a respectiva carga tributária. Entre as reformas necessárias, diz Maciel, são destaques, além da taxação de dividendos e de juros sobre capital próprio, a tributação da atividade rural e das deduções de despesas médicas, mencionada acima.
Há motivos de sobra para ceticismo, mas houve avanços em relação à subvenção do ICMS, a tributação dos fundos e o voto de qualidade do CARF, que foi fundamental, cita Falcão. Nenhuma legislação ou fiscalização é efetiva, diz, se não houver um órgão que mantenha os créditos tributários levantados. “Assim como será um tremendo avanço se o governo brasileiro conseguir fazer passar o que propôs no G-20, a tributação internacional de 2% sobre a riqueza. Nós vamos ter de fazer uma coisa que não fazemos hoje, calcular a riqueza dos bilionários. Hoje, todo mundo que cita os bilionários, mas não apresenta os números relativos à renda, cita a lista da Forbes. Não poderemos mais fazer isso.”
Segundo o economista Pedro Humberto Carvalho, pesquisador do Ipea, apesar de constar do texto do projeto da reforma tributária do consumo que o IPVA incidirá sobre embarcações e aeronaves de uso pessoal, o impacto não vai ser muito relevante, pois boa parte desses jatinhos não é nem propriedade pessoal, geralmente está no nome da empresa. Embarcações também podem ser um ativo da companhia. “São uma forma de evasão fiscal, o empresário coloca o seu bem pessoal em nome da empresa. Por esse motivo, acredito que a tributação não terá um efeito importante. Vamos esperar para ver como vai ser essa fiscalização.”
Carvalho considera o imposto sobre heranças, entretanto, muito positivo, porque fecha várias brechas existentes no planejamento sucessório. Serão tributadas heranças no exterior ou cujo falecido ou donatário resida no exterior, o que atualmente não é possível fazer, por conta de uma jurisprudência do STF, sobre a necessidade de se ter lei federal para isso. “Apesar de no texto da emenda da própria reforma tributária constar que os estados já podem aplicar essas regras e de os tribunais terem esse entendimento, a situação está um pouco no limbo.” O economista observa que há também as trusts, sociedades com jurisdição internacional criadas para proteção e planejamento patrimonial que possibilitam a transmissão dos bens para os beneficiários sem que seja preciso fazer inventário. “São criadas pelos ricos como se fossem empresas onde eles colocam o patrimônio e, se um deles morre, os outros integrantes da trust dividem, como se fosse uma espécie de herança. Mas como é dentro de uma estrutura empresarial, não incide o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, ITCMD. Agora vai incidir. A estratégia de fracionar as doações em vida para os herdeiros não vai mais funcionar e isso é positivo.”
No momento, acrescenta Carvalho, estão em curso muitos embates entre os Tribunais de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, porque quem podia, mesmo tendo um imóvel localizado no Brasil, registrava em nome de uma trust no exterior, em algum paraíso fiscal, e não pagava nada. No final da emenda da reforma, uma parte diz que, enquanto não houver regulamentação, os estados poderão tributar o legado, as doações no exterior. Há um imbróglio na Justiça, pois o Tribunal de Justiça de São Paulo não quer validar esse argumento. Até o Supremo dar a palavra final nessa reforma, as pendências permanecem. Melhor para os super-ricos. •
Publicado na edição n° 1325 de CartaCapital, em 28 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A mordida certa’