“Amor é quando é concedido participar um pouco mais” – Clarice Lispector
Em A Legião Estrangeira (editora Rocco), Clarice complementa: “Poucos querem o amor, porque amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que se voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor”.
Como se pode ver, não é à toa que Clarice é a escritora brasileira mais traduzida (em mais de 40 línguas).
João, o discípulo que Jesus amava, definiu Deus: Deus é amor.
Clarice traduziu João para os nossos dias – e nossas vidas, pessoais e coletivas.
Portanto, Deus não são considerações geopolíticas: diante do maior genocídio da atualidade, em Gaza, o governo brasileiro reagiu corretamente, condenando a infinita arbitrariedade do Estado de Israel, que anunciou a implementação de mais 22 assentamentos em terras palestinas, na Cisjordânia.
Importante observar que, em plena matança que vem perpetrando em Gaza, Israel ataca mais uma vez a soberania palestina, demonstrando ter carta branca de parte dos que o apoiam, cabendo ao mundo identificar quem são eles, única forma de parar o terrorismo israelense.
Se o desamor é o sem limites do ódio, o amor o é da doação.
Meu pai costumava contar que um colega dele da Faculdade de Medicina, da então Universidade do Brasil (atualmente UFRJ), o convidava para irem aos concertos matinais da Orquestra Sinfônica Brasileira, que, aos domingos, o maestro Heitor Villa-Lobos regia no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Numa dessas apresentações, havia apenas cinco pessoas na plateia.
Ao se dirigirem ao camarim para cumprimentaram o maestro, meu pai, vencendo a timidez, disse: “Maestro, que vergonha, um concerto desses para tão poucas pessoas.”
Ao que Villa lhe respondeu: “O senhor não se preocupe, pois se um dia estiver só na plateia, tocaremos com o mesmo entusiasmo”.
O maestro não fazia apenas música, ele fazia o amor.
Como Clarice, que respeitava tanto as palavras que lhes reconhecia vida própria.
De fato, na obra citada acima, diz textualmente: “As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito.”
Há uma grande humildade nesse ser-não ser.
Não é isso que pregavam os anarquistas?
A democracia participativa mais perfeita não é aquela em que a vontade popular é totalmente realizada, sem intermediários?
Sempre Clarice: “Eu sabia que nós somos aquilo que tem de acontecer.”
Mas como é difícil a aceitação!
Ao mesmo tempo, ela reflete: “E pessoas precisam tanto poder contar a história delas mesmas”.
Precisamos entender: a atualidade, a realidade, o transcendente, o político, o artístico, o psicodélico e o amor.
Mas precisamos, em primeiro lugar, entender nós mesmos, nossa trajetória e aquela da humanidade.
Para isso, contarmo-nos ajuda muito. Não é esse o principal instrumento da psicanálise?
A propósito, recomendo Virgínia e Adelaide, de Jorge Furtado, filme que conta a história do início da psicanálise no Brasil, em que Adelaide, jovem médica psicanalista, judia-alemã imigrada nos anos 30, fugindo do nazismo, forma psicanalista a negra socióloga Virgínia, na difícil e necessária arte da psicanálise.
Dois mundos tão diversos dialogando sobre opressão, oprimidos, liberdade e libertação.
São mulheres capazes de colher o transcendente, com a leveza de quem tem consciência de que só uma parte do divino nos é franqueada.
Ainda com Clarice: “Mas sentimentos são água de um instante. Em breve – como a mesma água já é outra quando o sol a deixa muito leve, e já outra quando se enerva tentando morder uma pedra, e outra ainda no pé que mergulha (…)”.
Fluir como água é lição de vida. É aceitar o que não pode ser mudado e ir em frente. Renascer a cada dia.
Para isso, contar a nossa história nos permite ter um quadro mais claro, fora de nós, com cores nossas, mas também as do sol – e da lua.
Evoluir para que a luta seja libertadora, libertante, diferente, só nossa e de todos.
Refletir com Pepe Mujica: do que preciso? O que quero?
A resposta pode ser bem simples e libertária: já tenho o que quero.
Mais, talvez, acabe derramando o conteúdo.