Pra onde vai, PT?

por Luís Carlos

Na década de 1940, quem sintonizava as ondas da famosa Rádio Nacional poderia ouvir, entre outras pérolas, as emboladas do pernambucano Manezinho Araújo. Dono de sucessos como “O carreté do Coroné”, “Cuma é o nome dele?” e “Mulher rendeira”, Manezinho levava o público que lotava o auditório da Praça Mauá ao delírio quando cantava os primeiros versos de “Pra onde vai valente?” Com sua agilidade e divisão rítmica única, perguntava ao público: pra onde vai valente? O coro então respondia: Vou pra linha de frente!

Quase um século depois, a canção pelo artista pernambucano cai feito uma luva para o impasse vivido pelo principal partido de esquerda da América Latina. Há algum tempo não é novidade que o Partido dos Trabalhadores, apesar do seu protagonismo, parece uma nau sem rumo no mar revolto da política brasileira.

Antes que algum leitor apressado aponte o dedo para tecer críticas ao texto, cabe esclarecer que, na combalida estrutura partidária brasileira, reconheço que o partido ainda é um dos mais orgânicos, seja pela quantidade de militantes e simpatizantes. Seja pela força apresentada até mesmo em 2018, quando com sua principal liderança detida injustamente e alvo da campanha sórdida armada pela imprensa hegemônica, grande capital e a “Liga da Justiça” curitibana (qualquer comparação com a “Liga da Justiça” carioca não é mera coincidência).

Ante ao que foi dito, com essa reflexão, não planejo entrar para o time de abutres que vaticinam a morte ou crise do partido diante de qualquer dificuldade enfrentada. O objetivo aqui é alertar para descaminhos, que caso não sejam repensados, podem levar o partido a uma virada sem volta.

Passada a apertada vitória do presidente Lula nas eleições de 2022 e o enfrentamento à intentona golpista de oito de janeiro, fora consolidada a ampla frente democrática construída para a disputa eleitoral. Aqui começa o problema para o partido que apesar de ser o principal ator da frente que conseguiu avançar para além do espectro da esquerda, figuras como Simone Tebet, Marina Silva, o próprio vice-presidente Geraldo Alckmin e o economista André Lara Resende (nomes incontestes do centro político e fiéis aliados do governo) contribuíram para equilibrar e dar face à coalizão.

Porém, como nosso país não é para amadores — literalmente —, o presidente e a cúpula do seu partido deixaram de priorizar o diálogo com o núcleo central dessa frente e a sua própria base social para dialogar com figuras que são nitidamente hostis a qualquer projeto democrático e popular. Assim, passados quase dois anos de governo, temos a permanência de quadros bolsonaristas nos escalões inferiores do governo e a contínua subserviência aos achaques do centrão e de figuras como Artur Lira e Rodrigo Pacheco.

Sobre a questão da tímida “desbolsonarização” da máquina pública, a justificativa seria uma suposta dificuldade para identificar quem seriam tais figuras, uma justificativa que não se sustenta. Basta lembrar que, em 2016, logo após defenestrar a presidenta Dilma do seu cargo, o ilegítimo Temer promoveu um amplo expurgo, mesmo após 14 anos de governos petistas. Em relação à subserviência ao presidente da Câmara, a justificativa cai no argumento da necessidade em garantir a governabilidade e escapar de um possível pedido de impeachment.

Ao olhar para a bancada do partido na Câmara Federal, podemos identificar sinais que exemplificam a falta de rumo do partido. Apesar de ser a segunda força da Câmara, o que assistimos é a opção do partido pelo exercício da pequena política, fruto da mediocridade e da falta de brio que tomou conta de boa parte da bancada do partido — claro que há exceções.

Porém, se antes tínhamos deputados como José Dirceu e José Genoíno, uma figura, que era admirada e respeitada inclusive por opositores, hoje temos seu irmão, José Guimarães; parlamentar que prefere priorizar os entendimentos com Lira ao necessário enfrentamento para o governo poder aplicar o programa para qual foi eleito pela maioria da população. No Senado, a situação não é diferente, com a figura de Jacques Wagner, que cada vez mais parece um membro do grupo político de Pacheco, inclusive contrariando o governo e o presidente Lula com falas públicas em momentos críticos.

O impasse vivido pelo Partido dos Trabalhadores pode ser visto como consequência da ausência de renovação dos seus quadros. Enquanto o partido tem sua cúpula política formada principalmente por homens brancos, e com uma leitura política voltada mais para o passado que para o presente e o futuro; figuras como o deputado paranaense Renato Freitas são colocados a margem, quando deveria ser uma das figuras de ponta na renovação partidária.

Enquanto o PT segue em águas revoltas, a renovação da esquerda e do campo popular vem surgindo principalmente de quadros do PSOL, e não adianta o leitor que não concorde com o argumento do autor dizer que o partido seria uma “quinta-coluna”. Sim! O partido tem parlamentares com uma atuação questionável marcada pelo oportunismo, e aqui basta uma busca pelos portais de notícias para identificar quem seriam essas figuras.

Porém, é nítido que parlamentares como Guilherme Boulos, Talíria Petrone e Erika Hilton têm se destacado pelo exercício da grande política e, em momentos de tensão e crise, surgem nas redes e na tribuna defendendo o governo e o presidente Lula com mais garra que muitos parlamentares petistas. Mesmo assim, parte da militância petista prefere enxergar esses aliados como “inimigos, fruto do identitarismo”, não percebendo que novos personagens estão entrando em cena (parafraseando o mestre Eder Sader), como ocorreu no final da década de 1970, resultado das mobilizações dos trabalhadores.

Na última semana, tivemos mais um descompasso explícito entre o discurso e a prática, dessa vez vinda do próprio Lula, que durante reunião do Conselhão fez falas duras sobre o mercado e a conjuntura, animando sua base social e a militância. Mas, como a alegria é sempre efêmera, no dia seguinte, o presidente sinalizou que não mexeria nas aposentadorias dos militares — salientando que havia passado o recado para o ministro José Múcio e que o mesmo deveria transmitir mensagem à cúpula militar.

A declaração do presidente, mesmo que de forma implícita, acabou desautorizando a ministra do Planejamento Simone Tebet, que dias antes comentou sobre a necessidade de tocar no tema, apesar de espinhoso. Para completar, o presidente ainda sinalizou que não vetaria uma possível anistia aos golpistas envolvidos no atentado à democracia perpetrado em oito de janeiro.

As falas do presidente Lula, somadas às intenções explicitadas pelo ministro Haddad em rever os gastos obrigatórios com educação e saúde e a desvinculação do BPC e das aposentadorias do salário mínimo, mostram o descompasso entre o governo e aqueles que o elegeram. Ao continuar nessa batida, em breve as falas incisivas do presidente, como a feita no final de semana em São Paulo; questionando a ausência do prefeito Ricardo Nunes e do governador Tarcísio de Freitas no momento em que seria celebrado um contrato fundamental para a expansão do transporte público na periferia paulistana, serão apenas frases de um anedotário político vazio.

Caso a nau petista insista em seguir navegando pelo mar da política sem um rumo definido e vacilando frente à sua base histórica, quando perguntada para onde irá, a resposta poderá ser qualquer uma, exceto que estaria indo para a linha de frente. Negar essa realidade, assim como negar a possibilidade de renovação dos quadros, levará fatalmente o partido a um cenário semelhante ao enfrentado pelo velho PCB e pelo PCI, que foram tragados pela conjuntura que não souberam enxergar de forma nítida.

Luís Carlos é historiador, pesquisador, compositor e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga

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Última Atualização: 02/07/2024