No final do ano passado, em dezembro de 2023, publiquei uma coluna intitulada Governo terceiriza a política do Ensino Médio para fundações empresariais, o ‘centrão da educação’. Fui prontamente enxovalhado nas redes sociais pelo setor inane e amorfo da militância governista, disposto a defender qualquer coisa chancelada por Lula ou seus subordinados.

Pois bem: há 20 dias, o Ministério da Educação não dá um pio sobre o conteúdo do Projeto de Lei n. 5.230/2023 de “reforma da reforma” do ensino médio aprovado pelo Senado Federal, que, ainda que de forma insuficiente, conseguiu avançar em diversos pontos problemáticos do texto aprovado na Câmara dos Deputados, sob a relatoria do deputado Mendonça Filho (União-PE) – ministro da educação de Michel Temer que sempre se declarou disposto a salvar o “legado” do ex-chefe.

No Senado, a relatoria da matéria ficou a cargo da Profa. Dorinha Seabra (União-TO), que propôs retomar a obrigatoriedade do ensino da Língua Espanhola no ensino médio, enfatizou as prerrogativas curriculares dos institutos federais, criou condições mais rígidas para a oferta de Educação a Distância, propôs a criação de uma nova instância de monitoramento da implementação da política de ensino médio pelas secretarias estaduais, criou um mecanismo para assegurar a oferta do ensino médio noturno, manteve o Enem atrelado à Base Nacional Comum (e não aos chamados “itinerários formativos”, contrariando posição do Inep). Propôs, por fim, uma solução perspicaz para o ponto nevrálgico da carga horária da formação geral básica (FGB): nos cursos técnicos e profissionais, a FGB poderia ter carga horária mínima de 2.200 horas até 2028, devendo ser ampliada para 2.400 horas até 2029 (atingindo o mesmo patamar mínimo do ensino médio regular).

O histórico do debate sobre a carga horária é longo, mas vale lembrar que a FGB do ensino médio foi reduzida pela reforma de Temer/Mendonça em 2017 a um teto de 1.800 horas (num universo de 3.000 horas totais). O resultado dessa operação foi a substituição das aulas de disciplinas importantes por “itinerários formativos” irrelevantes nas escolas públicas, especialmente nas mais vulneráveis.

A futura reforma da reforma, portanto, tinha como uma de suas tarefas principais recompor a carga horária da FGB para garantir o mínimo acesso ao conhecimento científico na última etapa da educação básica pública. Mas Mendoncinha, os onipresentes “parceiros” das fundações e institutos empresariais e parte dos secretários estaduais de educação – para os quais a linha-mestra da reforma de 2017 sempre foi a de economizar dinheiro com a educação dos mais pobres – continuaram tentando surrupiar a carga horária da FGB.

De um patamar mínimo de 2.400 horas para todos, eles já propuseram a manutenção das 1.800 horas atuais e elevações para 2.100 e 2.200 horas. Mas nunca aceitaram as 2.400 horas. A justificativa deles (raramente exposta em público) é que não teriam como garantir uma carga horária de 2.400 horas para todos e, ao mesmo tempo, a tão sonhada possibilidade de ampliação da oferta de ensino “profissionalizante” dentro das exíguas 3.000 horas totais (a propósito, esse “profissionalizante” feito em escolas sem infraestrutura e que não habilita para profissões técnicas deve vir sempre entre aspas). É evidente, pois, que um ensino médio integrado a uma formação que faça jus ao nome de “ensino técnico” exigiria que as secretarias estaduais fossem além das 3.000 horas letivas totais para parte dos/as estudantes. Ou seja, a questão de fundo é e sempre foi dinheiro.

A implementação da reforma de Temer nos estados, além disso, lembrou que os/as estudantes não são imbecis. A maioria rejeitou os cursos “profissionalizantes” nas redes estaduais e preferiu manter-se no ensino médio regular, ainda que submetida a frequentar as tais aulas esdrúxulas de “o que rola por aí?” e “empreendedorismo juvenil”.

Nesse sentido, o escalonamento proposto pela relatora da matéria no Senado foi corajoso. Reconheceu a necessidade apontada por dez entre dez educadores da oferta de uma FGB que, além de “básica”, seja “geral”; mas também se mostrou sensível à dificuldade dos entes federados de ampliar de imediato o número de vagas na Educação Profissional e Tecnológica (EPT) para atender à demanda que a nova reforma tenciona criar.

Sem pressionar as redes de forma imediata, a proposta de estabelecer um horizonte de cinco anos para a elevação da carga horária da FGB para estudantes da EPT (de 2.200 para as mesmas 2.400 horas do ensino médio regular) funciona como um estímulo à criação de políticas de ampliação de vagas em escolas técnicas estaduais e em institutos federais. Mas nada disso convenceu o relator da matéria na Câmara, que protocolou um parecer que reverte todos os avanços substantivos que o Senado propôs para o PL n. 5.230/2023. Somente alterações textuais cosméticas foram acatadas.

Dorinha Seabra, que fez um trabalho louvável em 2020 na relatoria da emenda que constitucionalizou o Fundeb (à época, como deputada federal), não pode ser acusada de insensibilidade. Foi secretária de educação do estado do Tocantins e também presidiu o Consed, clubinho de secretários estaduais que agora quer nivelar por baixo a formação básica no ensino médio brasileiro. O campo educacional que lutou nos últimos anos para revogar o “Novo Ensino Médio” reconheceu o esforço dos senadores e se uniu em torno do texto aprovado naquela casa. Por ocasião da votação no Senado, a relatora ainda afirmou que o texto a que haviam chegado fora produto de diálogo com a sociedade e com o MEC.

O governo Lula, todavia, parece propenso a dar razão à denúncia feita por esta coluna em dezembro do ano passado. Tão logo o Senado aprovou o texto melhorado do PL n. 5.230/2023, o líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE) veio a público reafirmar apoio ao texto chancelado por Mendonça Filho e pelas fundações empresariais. Segundo ele, o texto da Câmara “foi construído com todas as lideranças e respaldada pelo próprio presidente, Arthur Lira”. E o MEC, pasme-se, sequer se manifestou.

Se o texto do Senado é melhor e mais afinado às demandas do povo, isso parece importar pouco para um governo tão aferrado ao controle da imagem e excessivamente confiante na aplicação seletiva do princípio constitucional da transparência pública (façam o teste: solicitem ao MEC qualquer dado relevante sobre a consulta pública do ensino médio ou o programa “Pé-de-Meia”, p. ex.). O governo está optando por trilhar novamente o caminho do ensino médio de Michel Temer. Veremos se conseguirão evitar a repetição de seu fracasso.

Categorizado em:

Governo Lula,

Última Atualização: 09/07/2024