O futuro ainda nos quer?
por Eliseu Raphael Venturi
Houve um tempo em que esperávamos. A infância do mundo talvez tenha sido isso: um intervalo entre o que é e o que pode ser, onde se acreditava que o amanhã fosse uma promessa, uma continuação aperfeiçoada do hoje, uma curva aberta à reinvenção. Esperávamos por justiça, por mudança, por alguém, por Deus, por nós mesmos. Esperávamos porque o tempo era fértil e, mesmo diante da catástrofe, algo do possível seguia vivo.
Hoje, parece que não mais.
O futuro, outrora horizonte, tornou-se fardo. As palavras que o sustentavam — esperança, cuidado, melhoria, transformação — soam, para muitos, como resquícios de um vocabulário em ruínas. Há quem diga que esperar é não agir, que cuidar é fraqueza, que mudar é ingenuidade. Como se o mundo tivesse desistido de si, entregando-se à repetição maquinal da gestão de danos. Como se a única meta fosse sobreviver ao presente, mesmo que isso signifique deixar de viver.
Mas o que morreu, afinal? O possível ou nossa relação com ele? A esperança ou a ilusão que dela fazíamos? A ideia de mudança ou a fantasia de que ela viria sem atrito, sem perda, sem travessia?
Talvez as expectativas que construímos, moldadas por promessas de progresso linear, sejam de fato obsoletas. Mas isso não significa que o possível tenha desaparecido. Ao contrário: ele se esconde justamente onde não ousamos mais olhar. Habita os gestos miúdos, as palavras que se recusam ao cinismo, os vínculos que insistem em não se desfazer. Está na recusa em normalizar o sofrimento, na ética silenciosa de quem cuida sem plateia, na arte de resistir sem espetáculo.
O possível não morreu. O que está em coma é nossa disposição de escutá-lo. De habitá-lo. De desobedecer à lógica do “não adianta”, do “é assim mesmo”, do “não tem jeito”. O possível exige desaprender. Exige desapego das formas previsíveis de melhora. Exige coragem de não saber o que vem depois — e ainda assim permanecer.
O futuro não é dado. Nunca foi. Ele é uma invenção partilhada, uma tarefa coletiva, um ato ético. E se a esperança precisa ser reformulada, que o seja. Não mais como espera passiva, mas como construção de lacunas, de respiros, de mundos outros. Esperança como política do imprevisível.
O cuidado, por sua vez, não é obsoleto: é insurreição. Num mundo que lucra com o abandono, cuidar é ato radical. Não se trata de romantizar a dor, mas de convocar uma responsabilidade real — a de não desistir da vida, mesmo quando ela parece ter desistido de nós.
E a melhoria? Que ela deixe de ser sinônimo de eficiência ou crescimento. Que se converta numa melhora do sensível, do laço, da escuta, do espaço onde o outro cabe. Mudar não é otimizar: é arriscar, quebrar moldes, ceder ao incerto.
Talvez o que esteja morrendo seja o desejo de controlar o futuro, e não o futuro em si. Talvez tenhamos que reaprender a nos relacionar com o tempo, com o outro, conosco. Reaprender a desejar — sem garantias. A viver — sem roteiro. A esperar — sem perder o presente.
Porque o possível, mesmo quando negado, insiste. E o futuro, se ainda nos quiser, nos pedirá tudo: que sejamos dignos dele.
Eliseu Raphael Venturi é doutor em direito.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “