
Morreu José “Pepe” Mujica. Morreu o homem de fala mansa e ideias incendiárias, de ternos surrados e moral reluzente; o camponês que presidiu um país sem jamais abandonar o campo. Morreu — e a imprensa brasileira, essa mesma que há décadas se apressa em colar etiquetas onde deveria haver perguntas, correu a batizar o corpo ainda morno com o rótulo mais funcional possível: “símbolo da esquerda”.
E então desfilaram-se os obituários, em títulos uniformizados pela lógica do oligopólio, que diziam mais sobre os vivos que os redigiram do que sobre o morto que pretendiam homenagear.
O Globo: “O presidente mais pobre do mundo” que foi ícone da esquerda
Curioso caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde jornalístico, O Globo resolveu vestir-se de homenageador. Falou do “presidente mais pobre do mundo”, mencionou o “ícone da esquerda”, imprimiu uma foto grande, generosa. Por um instante, pareceu lembrar que há grandeza em quem ousa viver com pouco e sonhar com muito. Pareceu compreender que Mujica não foi apenas um símbolo da esquerda, mas a memória viva de uma possibilidade: a de que a política, sim, pode ter ética — e de que o poder não precisa deformar a alma. Mas, claro, tratou de limitar o alcance: foi “símbolo”, sim, mas da esquerda. Ou seja, já sabemos: não é para todos.

Valor Econômico: Morre José Mujica, símbolo da esquerda na AL
Cão de guarda do capital em pele de jornal econômico, fez o dever de casa e repetiu o mantra do patrão (O Globo). “Símbolo da esquerda”, mas comedidamente “na América Latina”, como quem diz: não se assustem, leitores, ele foi apenas um folclore regional — uma espécie de Che Guevara sem fuzil e sem Paris Match. Nada que ameace os bons negócios ou a ordem global das coisas. Nada que perturbe o sono dos executivos da Faria Lima.
O Estado de S. Paulo: “Ex-presidente uruguaio virou símbolo da esquerda na América Latina”
O velho coronel de papel, com extrema má vontade — mas por obrigação de ofício — publicou o mínimo, o indispensável. Como se Mujica fosse uma pedra na garganta, produziu um constrangimento histórico, culminando num editorial ruminante e ressentido que mistura nomes que não cabem na mesma frase — Mujica, Lula e Bolsonaro — como se isso fosse possível sem insultar a inteligência do leitor. É o gesto típico de quem não compreende e, por isso mesmo, despreza. E comete, assim, o crime silencioso da desonestidade intelectual: o de nivelar todos por baixo, para que nenhum se destaque.

Folha de S.Paulo: “Morre Pepe Mujica, presidente do Uruguai e símbolo para a esquerda”
E então vem a Folha, sempre ela, faceira e desavergonhada e reduz Mujica a um “símbolo para a esquerda”. Só para ela. Como se Mujica fosse um talismã tribal, um totem exclusivo — e não uma das raras figuras da política contemporânea capazes de comover até mesmo os desiludidos, os órfãos da utopia, os esquecidos pela democracia de mercado. A Folha, com sua ironia passivo-agressiva habitual, não consegue enxergar que Mujica transcendeu a esquerda — não para negá-la, mas para reencantá-la. Ele falava à parte mais adormecida de todos nós: aquela que ainda crê que há lugar para bondade na política, que ética e poder não são termos inconciliáveis.
Ao negar a Mujica a potência de ser universal, negam-lhe o direito de tocar corações para além das fronteiras ideológicas. Negam-lhe o direito de inspirar aquele operário que votou na direita, iludido por slogans e promessas, mas que sente, no fundo do peito, que algo está profundamente errado. Negam-lhe o direito de ser um alerta aos que se resignam a trocar suas vidas por parcelas intermináveis e promoções vazias. Negam-lhe, sobretudo, o direito de ensinar a amar a simplicidade — esse valor tão subversivo num mundo que nos quer consumistas, apressados e permanentemente insatisfeitos.
Porque Mujica, ao contrário do que sugerem esses títulos cautelosos, não era só um símbolo. Era um desafio. Um desconforto ambulante. Um lembrete incômodo de que talvez estejamos vivendo errado. E de que a felicidade — essa palavra tão prostituída pela publicidade — talvez resida menos em possuir do que em partilhar.
Esses jornais — especialmente os que fingem imparcialidade enquanto escorregam em preconceitos mal disfarçados — tratam de confinar Mujica ao gueto da esquerda porque não suportam a ideia de que ele possa ser maior que isso. Porque, se Mujica é um homem universal, então suas ideias também o são. E se suas ideias o são, então talvez precisemos rever não apenas nossos votos, mas nossas vidas.
E isso, claro, é pedir demais de quem prefere que tudo continue como está.
Morreu José Mujica.
Mas não morreu sua pergunta, feita com a força de uma vida coerente e não com as palavras ocas da retórica, vazias de existência: “É isso mesmo que vocês chamam de vida?”
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