O fim do começo

por Daniel Afonso da Silva

Now this is not the end. It is not even the beginning of the end.
But it is, perhaps, the end of the beginning.
Winston Churchill

Aquele 9 de novembro de 1942 causou frisson na alta sociedade londrina. O primeiro-ministro Winston Churchill ia convidado do prefeito para um jantar entre confrades, onde apresentaria as suas impressões sobre a guerra. O desembarque aliado tinha sido um sucesso. O Norte da África estava pouco a pouco sendo reconquistado. O Marrocos e a Argélia começavam a respirar aliviados com bandeiras inglesas e norte-americanas flamulando por todas as partes. Hitler e Stálin travavam batalhas implacáveis no front Leste. O calvário de Stalingrado às voltas de algum fim. As preocupações do presidente Roosevelt estavam em todas as partes. Notadamente no Atlântico e no Pacífico. O general MacArthur fazia o que podia do outro lado do mundo enquanto o chefe de estado-maior, general Marshall, seguia priorizando a Europa. Onde os europeus começavam a sentir alguma reação rumo à vitória. Eram excelentes as notícias vindas de Casablanca, Argel, Washington e Moscou. Era o caso e o bom momento para se apreender a impressão do comandante-em-chefe inglês. Aquele do sangue, suor e lágrimas. Que vivia a política como romance. Vez suspense. Vez drama. Vez suspense e drama misturados. Sempre com enigma. E com muito enigma ele exprimiu a sua avaliação no momento da guerra aos seus confrades londrinos com “Now this is not the end. It is not even the beginning of the end. But it is, perhaps, the end of the beginning” [Ainda não é o fim. Também não é o começo do fim. Mas, talvez, o fim do começo].

Alguns entenderam. Outros, não.

Não era o fim. Seguramente não era. Mas também não era um começo. Pois o começo, no espírito de Churchill, remontava a 1914, com sobressaltos em 1929 com a crise, 1933 com Hitler, 1935 com a aventura italiana na Etiópia, 1936 com Franco, 1937 com a invasão japonesa sobre a China, 1938 com a anexação da Áustria à Alemanha e 1939 com a invasão alemã sobre a Polônia. Uma longa noite escura em vinte anos de crises. Acentuadas pelo assalto de Varsóvia.

O assalto de Varsóvia causou espanto no mundo inteiro. Não simplesmente pela agressão nazista aos poloneses. Mas pela astúcia do Reich no emprego coordenado da Wehrmacht e da Luftwaffe no aturdimento das forças adversárias através de ataques relâmpago. Era a primeira vez que o estado-maior alemão determinava algo assim, com força e determinação totais. Em busca da liquidação rápida e sem piedade. Como demonstração, da invasão à capitulação – com a assinatura do acordo Brest-Litovsk –, as forças do Reich empregaram apenas três semanas. Do 17 de setembro ao 8 de outubro de 1939.

Tempo curto, batalhas rápidas, custos altos. Dois milhões e seiscentos mil soldados foram engajados de parte a parte. Um milhão de poloneses e um milhão e seiscentos de alemães. Perdendo-se 15.450 soldados e 819 oficiais alemães e 100.000 poloneses mortos. Sem contar o oceano de feridos de parte a parte e os mais de 400.000 poloneses feitos reféns dos alemães.

Diante dessa desproporção, o The New York Times e a Newsweek entenderam por bem classificar a estratégia de Blitzkrieg – guerra-relâmpago – como uma inovação alemã. O que muito alegrou ao Führer, que, no dia 23 de novembro de 1939, anunciaria a aplicação dessa mesma estratégia em todos os seus demais inimigos doravante, inclusive a França.

Parecia boutade. Mas não era. E, em meados do ano seguinte, a Blitzkrieg derrubou a França.

 O efeito dessa derrota francesa foi instantaneamente planetário. Pouco a pouco a perplexidade tomou conta de todos. E não era pra menos. A França era o grande bastião europeu do Mundo Livre e, agora, descia à genuflexão. Numa étrange défaite. Que ninguém conseguia verdadeiramente entender.

Sob esse choque, vários franceses recusaram-se a seguir as ordens do marechal Pétain e seguiram para o refúgio em Londres. Incluindo Charles De Gaulle, que utilizando-se das ondas da BBC, conclamou uma aliança global para a mutualização de energias contra os inimigos da democracia, do liberalismo e do Mundo Livre, simplesmente questionando “Mais le dernier mot est-il dit ? L’espérance doit-elle disparaître ? La défaite est-elle définitive ?” [A última palavra já foi dita? A esperança deve desaparecer? Essa derrota é definitiva?].

Frente a isso, o estado-maior norte-americano – e, notadamente, os homens de farda que haviam combatido a Grande Guerra na Europa em 1917-1918 –, entendeu o chamado e começou a revisar seus planos de guerra. Na mesma sintonia, o alto comando britânico iniciou uma aliança determinante com seus homólogos norte-americanos.

Confirmada a reeleição do presidente Roosevelt no 8 de dezembro de 1940, o primeiro-ministro Churchill enviou uma carta à Casa Branca apresentando l’état de lieu da agonia europeia. Mas, ainda soterrado nos despojos da campanha, Roosevelt seguiu hesitante em ingressar diretamente no conflito. A composição de forças para um esforço comum de guerra mais decisivo ainda precisava ser amadurecida no Congresso e na opinião pública dos Estados Unidos. O que começou a ocorrer entre janeiro e março de 1941.

A opinião pública norte-americana ainda não tinha clareza da situação. Uma sondagem realizada naqueles meses indicou que 80% da população era terminantemente contrária à guerra – leia-se: ao esforço de guerra, com aumento do envio de recursos materiais, financeiros e humanos – e 60% desejava a derrota da Alemanha.

A superação desse mal-estar veio com a decisão do presidente Roosevelt de organizar-se a Conferência do Atlântico, reunindo os principais mandatários da Casa Branca e de 10 Downing Street, ao largo de Terra Nova, nos Estados Unidos, do 9 ao 12 de agosto de 1941.

O evento foi todo norte-americano. Da inspiração ao resultado. A administração norte-americana queria essencialmente reafirmar os valores ocidentais inegociáveis encarnados no espírito dos Quatorze Pontos do presidente Wilson. Levando o documento final, a Carta do Atlântico, ratificado no dia 14 de agosto de 1941, a reforçar o aspecto mais determinante da presença e da influência multilateral norte-americana no mundo que era a negação à expansão territorial e à modificação de fronteiras sem o consentimento dos estados implicados. E, como consequência, oficializando a harmonização de táticas e a mutualização dos esforços de guerra entre ingleses e norte-americanos. Como isso se daria na prática, ainda não se sabia. Mas eram essas as intenções.

Terminado o evento, a delegação britânica voltou para Londres com a sensação de conforto. Seus integrantes – a começar do primeiro-ministro Churchill – sabiam que alguma esperança começava a ser nutrida.

Por esse mesmo momento, meados de 1941, Hitler havia rompido o pacto germano-soviético, estava invadindo a parte Leste da Polônia e marchava decisivo rumo a Moscou. Mais adiante, no fim do ano, outro imponderável ocorreu: os japoneses atacaram Peal Harbor no 7 de dezembro de 1941.

Esse evento produziu um imenso choque mental entre os norte-americanos. Levando-os a sentir tudo aquilo como uma violação sem precedentes na história dos herdeiros de George Washington, Abraham Lincoln e Woodrow Wilson. Amargando tudo, assim, como uma profunda humilhação. Algo imperdoável. Que sugeria vinganças implacáveis.

Percebendo o efeito psicológico dessa fúria, o primeiro-ministro Churchill atravessou o Atlântico no 8 dezembro de 1941 com destinação à Casa Branca com o propósito de prestar solidariedade aos norte-americanos. O primeiro-ministro era dotado de cultura histórica suficiente para perceber a gravidade daquilo que tivera lugar com a destruição das frotas norte-americanas. Ele sabia que a opinião pública norte-americana iria mudar subitamente de posição sobre a guerra. E o seu receio era o de ser, doravante, abandonado na Europa ante Hitler. Estava claro para todos que Pearl Harbor lançara instantaneamente, moral e espiritualmente, a integralidade dos norte-americanos na guerra. Restava, assim, saber quais seriam as suas prioridades. Ao que o presidente Roosevelt, ainda aturdido pelas notícias de Pearl Harbor, foi tranquilizador e compassivo com um sucinto Germany First.

Desse encontro amadureceu-se a necessidade de se promover um primeiro balanço geral, coletivo e oficial da guerra. Que desembocaria na primeira conferência integrada entre Washington e Londres denominada de Arcadia, na viragem de 1941 a 1942.

A Arcadia consumiu três semanas em conversações, balanços e projeções onde as culturas militares dos dois países finalmente entraram em espelho e harmonizaram as preocupações. Que envolviam

1. Como conter o avanço japonês e

2. Como bloquear as ofensivas inimigas no Mediterrâneo – notadamente aquelas que visavam o controle da África.

Caindo em peculiaridades, do lado britânico existia uma preocupação suplementar com os domínios médio-orientais, de onde advinha o seu petróleo. Além disso, frontalmente ante Hitler, a sua estratégia envolvia encontrar meios de cercar, cansar e sangrar a Alemanha. Para tanto, eles propuseram um bloqueio naval no Mediterrâneo para o bombardeio sintomático dos principais aliados nazistas na Europa Meridional, sendo a Itália um deles, e um apoio material à União Soviética para a contraofensiva de Stálin ante Hitler no front Leste.

Do lado norte-americano, a cultura militar, forjada pelas marcantes batalhas da Revolução e da Guerra Civil, apostava no confronto direto e no esmagamento do oponente de modo a levá-lo à rendição sem condição. Numa ótica em que o Japão e a Alemanha precisariam ser confrontados e destroçados inclementemente até a humilhação do seu último homem. Consoante a esse espírito, o estado-maior norte-americano simplesmente revisou, uma vez mais, a sua estratégia e solicitou ao presidente Roosevelt uma modernização geral de frotas, aviões e divisões.

Entre os norte-americanos, os equipamentos náuticos estavam todos envelhecidos e a sua indústria naval precisaria ser recomposta. As suas forças de ar dispunham de apenas 2.500 aparelhos – e muitos em condições funcionais e operacionais discutíveis. Sem contar que as suas divisões disponíveis, treinadas e disciplinadas, não passavam de 15.

Eis as concepções e desafios de parte a parte.

Mas um novo bemol foi posto na composição.

Enquanto britânicos e norte-americanos se punham em fase na Arcádia, os soviéticos de Stálin bloquearam os nazistas de Hitler às portas de Moscou desmascarando a infalibilidade da Wehrmacht, da Luftwaffe e da blitzkrieg dos alemães. O que levou o presidente Roosevelt a inserir a União Soviética na estratégia de vitória sobre Hitler.

Avançando e em decorrência da Arcadia, os comandos britânicos e norte-americanos verteram-se num só. Consequentemente, a partir de inícios de 1942, foi criada a Combined Anglo-American Chiefs of Staff (CCS), com sede em Washington, e o alto comando dos dois países passou a reorganizar o seu aparelhamento militar de forma conjunta. Em adição foi também criado o Join Chiefs of Staff, agrupando apenas os chefes de estado-maior, que seria adiante ressignificado, em 1947, na forma de Pentágono.

A primeira reunião desse comando integrado foi conduzida pelo chefe de estado-maior norte-americano, o general George Marshall, com o propósito de redefinição das forças em combate e a recomposição da estratégia geral dos aliados na guerra.

Da primeira demanda foi criado um comando único para cuidar do Pacífico e do Sudeste Asiático confiado ao oficial britânico Archibald Wavell. Da segunda, ficou estabelecido que as prioridades do Reino Unido seriam o Mediterrâneo e as terras médio-orientais deixando os norte-americanos com o Pacífico.

Quanto aos soviéticos e aos chineses, doravante, a ideia era acompanhar mais de perto as suas movimentações.

O avanço dos japoneses seguiu implacável e em poucas semanas eles dominaram Guam e Wake no Pacífico, as Filipinas e a Indonésia e ameaçaram chegar à Nova Zelândia e à Austrália. Se isso não bastasse, ainda tomaram Hong Kong, a Malásia, Singapura, a Birmânia, ameaçaram a Índia e atacaram o Ceilão. Tornando toda a segurança britânica e norte-americana na região vandalizada.

No Mediterrâneo, os alemães avançaram com o general Rommel sobre a Líbia e ameaçaram tomar o canal de Suez, no Egito.

Para minorar esses danos, o general Eisenhower, auxiliar do general Marshall, apresentou um relatório suscinto com as prioridades norte-americanas naquele cenário que envolviam

  1. Preservar o tráfego no Atlântico e apoiar incondicionalmente o Reino Unido.
  2. Impedir a qualquer custo a queda do Oriente Médio e da Índia sob o julgo de alemãs e japonesas.
  3. Apoiar incondicionalmente a União Soviética – a única verdadeiramente capaz de desbaratar as forças de Hitler.

Convencido da relevância e da precisão da orientação, o presidente Roosevelt enviou o seu conselheiro Harry Hopkins a Londres, no início de abril de 1942, para uma consulta direta com o primeiro-ministro sobre a minuta de prioridades proposta por Eisenhower.

Churchill não se sentiu inteiramente contrariado de saída. Mas seguiu integralmente hesitante sobre a natureza do apoio aos soviéticos.

Ciente dessas conversações, Stálin despachou o seu ministro Molotov para Washington para ter diretamente com o presidente Roosevelt. O assunto era justamente sobre a ressignificação do lugar da União Soviética nos teatros de guerra. As demandas de Stálin eram simplesmente a manutenção dos territórios conquistados desde 1939 e a divisão do espaço europeu em duas zonas de influência. Ao que Roosevelt prometeu meditar. Mas, sem muito meditar, aumentou seu apoio logístico, econômico e militar aos soviéticos.

Sob essa ambiência, em junho de 1942, o primeiro-ministro Churchill atravessou novamente o Atlântico para ter com o presidente Roosevelt com o propósito de realçar a convicção dos oficiais britânicos da importância de um bloqueio do Mediterrâneo. E também para apresentar duas reinvindicações.

Primeira: a imperiosidade do envio de tropas norte-americanas para auxiliar as frentes aliadas na Europa.

Segunda: um desembarque norte-americano no Norte da África e outro na Noruega.

Com o propósito de bombardear os nazistas na Europa Meridional e cercar a Alemanha até deixá-la exangue.

Diante dessa visita, Roosevelt convocou os seus oficiais para uma reflexão mais profunda sobre essa ideia de desembarque. E, mais uma vez, solicitou a Eisenhower, agora comandante norte-americano na Europa, uma exposição de intenções. Donde sairia o germe da operação Tocha, que resultaria no plano de desembarque norte-americano no Marrocos e na Argélia.

Na visão de Washington, esse desembarque era muito mais relevante que simplesmente conter Hitler no Mediterrâneo e bombardear a Itália: era uma forma de habilitar o lugar da França na guerra.

Liberar o Norte da África do julgo nazista seria um golpe direto no governo nazista de Vichy e uma forma de reabilitação do general De Gaulle. Entre os oficiais britânicos e norte-americanos, o general francês era respeitado e valorado. Mesmo que nos altos escalões civis de Londres e Washington ele fosse francamente ignorado e mesmo desrespeitado. De toda sorte, o peso da França e de seus domínios coloniais pareciam decisivos.

O desembarque no Marrocos e na Argélia, indubitavelmente, fragilizaram a presença fascista e nazista ao Norte da África e amplificaram o entusiasmo dos europeus e notadamente dos britânicos. Notadamente na batalha de Kasserine pela Tunísia, onde se deu o primeiro encontro face to face de alemães e norte-americanos.

Uma batalha complicada. Mas, ao fim, exitosa.

Levando a alta sociedade de Londres a convidar o primeiro-ministro Churchill para um jantar. Aquele do dia 9 de novembro de 1942. Onde firmar-se-ia o diagnóstico certeiro: era o o fim do começo. Ou caso se queira: “Now this is not the end. It is not even the beginning of the end. But it is, perhaps, the end of the beginning”.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

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Last Update: 29/04/2025