No Dia da Independência dos Estados Unidos em 1987, eu me vi sentado em frente ao ex-presidente Jimmy ­Carter, seis anos após seu mandato, num jardim lindamente cuidado no vale rural do Rio Tyne, no nordeste da Inglaterra. Era a casa de um contador credenciado chamado Tony Coates. As ­duas filhas dele – Amy, de 9 anos, e ­Charlotte, de 6 – sentaram-se em seus joelhos.

Iríamos discutir as ideias de Carter para seus anos pós-presidenciais e a razão de sua visita: o décimo aniversário da Friendship Force, a Força da Amizade, lançada por ele em 1977, logo após se tornar presidente, para conectar gente do mundo todo com trocas de casas entre norte-americanos e outros – incluindo cidadãos da China comunista e da União Soviética. Elas começaram entre 381 norte-americanos e 381 geordies (os habitantes e o dialeto daquela região inglesa), entre os quais o próprio Coates.

O dia começou com uma entrevista coletiva para o (estranhamente) pequeno grupo de jornalistas interessados: ­Coates, Carter e sua equipe de segurança corriam ao ar livre. Meu encontro individual com o ex-presidente estava agendado para uma hora mais tarde, depois que ele tivesse tomado banho, trocado de roupa e se alimentado.

Eu era um novato no The Guardian, um refugiado da televisão, mas o editor-adjunto me escalou, em vez de sua equipe política, para a entrevista porque me considerava “um cara tipo Carter”. O pensamento de que eu poderia ser o mesmo “tipo de cara” que um homem que ocupou o cargo político mais poderoso do mundo era tão pesadamente gratificante quanto lisonjeiro e desconcertante. Eu estava nervoso, é claro, mas assim que começamos a falar fui contaminado pela paz interior de ­Carter – do tipo proposital para que a conversa fosse direta e séria, em vez de posada.

A entrevista virou uma conversa. Ali estava um homem completamente livre de poses e graças, muito menos da pompa narcisista que define o poder. Uma humildade que não era artificial. Comentei no artigo sua “gentileza caracteristicamente pensativa, pela qual muitos norte-americanos anseiam novamente”. E logo ansiarão de novo – direi mais sobre isso abaixo. O presidente Carter tinha um sorriso doce feito mel, mas como ele conseguiu escalar os cargos mais oleosos para alcançar o ápice do poder?

A resposta: o que você leu a semana toda. Carter venceu, perdeu e se reergueu no cargo falando claramente a respeito de suas crenças sobre o que nos une, em vez de nos dividir, na possibilidade do bem, na possibilidade da paz e na promessa de justiça social, com uma decência desconcertante, no caso dele movida pela convicção religiosa.

Ouvir e assistir Carter era um caso de crença na crença dos outros. Ele era jovem: um corredor de 62 anos, com quase quatro décadas ativas pela frente. Falou com mais detalhes do que minha pauta poderia incluir sobre o que pretendia alcançar – e conseguiu – durante essas décadas. Sobre como a fome era evitável, assim como as doenças, entre os mais pobres do mundo. Falou sobre o direito dos palestinos à soberania, sobre redução de armas e distensão com a União Soviética. Falou com paixão sobre segurança para as crianças do mundo todo. Propostas para si mesmo e para outros que as levariam ao redor deste mundo – vestindo jeans, como nós dois naquela manhã – e as colocariam em justa oposição a todos os seus sucessores.

O ex-presidente dos EUA pregava decência, compaixão e franqueza

O dia em Northumberland prosseguiu como uma demonstração dessas crenças por meio do comportamento pessoal. ­Carter estava desconfortável num pomposo desfile por Newcastle, gritando “Vamos, rapaziada!” Trocou de lugar com um lacaio na carruagem do prefeito e depois desceu à rua para conversar. O pequeno grupo de imprensa o seguiu para ver a Muralha de Adriano, visita abreviada a pedido de Carter, quando retornamos para assistir a alguns lances de críquete, que o intrigava, num campo da vila. Mais importante, quando chegou ao jantar de gala, no qual fez um discurso comovente, o ex-presidente havia, por insistência própria, virado uma garrafa de cerveja Newcastle Brown Ale num pub, depois de aprender o jeito certo de pedir: “Dê-nos uma broon”.

Na época em que conheci Carter, a América de Ronald Reagan estava envolvida em guerras que mataram milhares de salvadorenhos e indígenas guatemaltecos. A coluna oposta na página em que meu artigo foi publicado era uma reportagem sobre a negociação do coronel ­Oliver North com o Irã, regime que contribuiu para a queda política de Carter, de armas e cocaína para travar essas guerras. Enquanto a Grã-Bretanha estava cometendo suicídio industrial, a América voltava ao inferno do qual Carter ajudou a tirá-la após o desastre no Vietnã.

Mas Carter estava cruzando o planeta para liderar a oposição a esse tipo de abominação, moralmente armado com o que ele falou naquele dia. Em contraste com a baboseira lucrativa e a fanfarronice de outras carreiras pós-políticas desde então, Carter realmente fez uma diferença para melhor na maneira como o mundo gira. Carter, o anti-Reagan, ­Carter, o anti-Trump.

Que momento para essa triste notícia de sua morte. Não há dois detentores do cargo que possam estar mais distantes um do outro: o fazendeiro de amendoim que venceu pregando “compaixão e decência, franqueza e honestidade, fraternidade e amor” (palavras de um discurso de campanha dele) e o criminoso condenado e abusador sexual que logo será empossado por pregar ódio estúpido, mas raivoso, e a impunidade do prepotente.

Escrevo isso no dia de Ano-Novo em Ojai, na Califórnia, um bastião (privilegiado, paradisíaco) de civilidade e liberalismo, aguardando o dilúvio que está por vir. É irônico que Carter tenha sido deposto por um dilúvio da Califórnia. Mas este é um estado diferente daquele que lançou Reagan contra Carter, e será uma paliçada na resistência a Trump, como testemunham as cartas de ameaça ao seu governador sobre migração e santuário.

Com base em que princípios a Califórnia, e qualquer um, em qualquer lugar, resistirá ao que está por vir? Exatamente os princípios defendidos por Carter naquela manhã na Inglaterra. E isso foi antes da garrafa de broon. •


*Ed Vulliamy foi correspondente de The Observer nos EUA de 1994 a 2003.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Publicado na edição n° 1344 de CartaCapital, em 15 de janeiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O farol se apaga’

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Last Update: 09/01/2025