Jorge Bergoglio passou por uma última provação antes do derradeiro suspiro. O papa recebeu no Vaticano o vice-presidente dos Estados Unidos, JD Vance, convertido ao catolicismo durante o pontificado do argentino, mas símbolo de tudo aquilo que o argentino combateu ao longo dos 12 anos à frente da Igreja. Os relatos oficiais dão conta de um encontro cordial entre os dois, como era de se imaginar, dadas as naturais simpatia e serenidade de Francisco e as exigências diplomáticas do cargo. Apesar de ter recebido Donald Trump no primeiro mandato (só Bolsonaro não conseguiu uma audiência) e merecido do presidente norte-americano um elogio burocrático – “era um bom homem” –, o argentino era a antítese do atual ocupante da Casa Branca e de seus aliados. “Não é um cristão”, definiu o pontífice, em 2016, a respeito do magnata republicano. Em fevereiro, diante das deportações de imigrantes, chamou de “vergonha” o plano do governo dos Estados Unidos. “O que é construído com base na força, e não na verdade sobre a igual dignidade de cada ser humano, começa mal e terminará mal”, vaticinou.
“Não é o papa, mas Jesus, que os coloca (os pobres) no centro”, afirmou, ao rebater a pecha de comunista
A morte de Francisco, vitimado por um AVC na madrugada da segunda-feira 21, abre um período de incertezas a respeito dos rumos e da relevância da Igreja Católica. Nos 12 anos de papado, Bergoglio firmou-se como um raro estadista em um mundo submetido a lideranças liliputianas e provincianas e ameaçado por um movimento de extrema-direita que sonha em reinstalar as trevas da Idade Média. As batalhas internas na Igreja, o jogo de poder no Vaticano e suas próprias convicções e limitações tipicamente humanas o fizeram parecer contraditório em alguns momentos, para decepção de quem esperava, com grande dose de autoengano, uma “revolução” religiosa. O papa era, sobretudo, um reformista. Não ousou subverter a doutrina, criticou de forma obtusa o direito ao aborto, mas enveredou de forma habilidosa pelas brechas que a interpretação dos dogmas e das leis permite aos verdadeiros “homens de boa vontade”. Acolheu os homossexuais, combateu velhos preconceitos, buscou ampliar o espaço das mulheres na estrutura, abriu-se ao diálogo com outras religiões (“todas são um caminho para Deus”) e fez valer a promessa cristã e franciscana de servir aos desvalidos. Por seguir os ensinamentos originários da religião, era chamado de comunista, “acusação” a qual rebatia com bom humor e bom senso. “Não se pode subtrair a centralidade dos pobres no Evangelho”, afirmou certa feita. “E isto não é comunismo, é puro Evangelho. Não é o papa, mas Jesus, que os coloca no centro, nesse lugar. É uma questão da nossa fé e não pode ser negociada. Se não aceitardes isto, não sois cristãos.”

O funeral do pontífice atraiu milhares de fiéis e deu mostras da enorme popularidade de um líder religioso sempre preocupado com as angústias e vicissitudes do rebanho – Imagem: Vatican Media e Tiziana Fabi/AFP
O maior legado de Bergoglio foi ter reconectado uma instituição obsoleta e bolorenta à base de fiéis angustiados pela falta de esperança. Sua eleição, inesperada, em 2013 teve o efeito do frescor de quando se abre a janela em uma casa trancada por muito tempo. Também neste caso, Francisco distinguia-se do antecessor, Bento XVI, que renunciou ao cargo, por conta, entre outras, das críticas à sua inação diante dos incontáveis escândalos de abusos sexuais que conspurcaram a imagem do Vaticano. O alemão macambúzio Joseph Ratzinger cedeu o lugar ao descontraído argentino, capaz de perder um fiel, mas não de perder a piada. Bergoglio reservava frases especiais aos brasileiros. “É muita cachaça e pouca oração”, brincou. Ou quando, ao receber um exemplar da obra sobre renda mínima do ex-senador Eduardo Suplicy, não resistiu: “Trouxe o livro, mas esqueceu a cachaça”. O papa era argentino, dizia, “mas Deus é brasileiro”.

Ratzinger era a nêmesis de Francisco. Defendia uma cruzada contra as demais religiões, enquanto Bergoglio apostava no diálogo – Imagem: Tiziana Fabi/AFP e Papa com religiosos
Embora os conservadores e reacionários acusassem Bergoglio do “pecado da ideologia”, doutrinário mesmo era Ratzinger, cuja preocupação em reafirmar os axiomas da fé e restabelecer a cruzada contra as demais religiões, do Ocidente contra o Oriente, sufocava qualquer eventual traço de empatia com os cristãos cada vez mais afastados das homilias. Bento XVI era germanicamente esforçado, não um intelectual brilhante, como tentava demonstrar de forma sôfrega. Com aquela expressão severa e a cultivada disciplina poderia se passar tanto por um papa quanto por um presidente de banco suíço. Para captar algo de sua essência, a única opção era olhar para os pés, que preferiam sapatos exclusivos, que chegaram a ser confundidos com calçados Prada, às sandálias do pescador. No comando do Discatério para a Doutrina da Fé, antigo Santo Ofício, tornou-se a espada de João Paulo II na decapitação dos teólogos da Libertação na América Latina. Fervoroso anticomunista, o polonês Karol Wojtyla, pontífice midiático, não só tampou a visão para velhos escândalos, como produziu os seus próprios. Na luta “divina” contra o mal na Terra, a União Soviética, aceitou no Banco do Vaticano depósitos de ditadores e mafiosos. Viu o Muro de Berlim desabar, mas o fim da Cortina de Ferro não abriu uma janela de oportunidades para o catolicismo. Ao contrário. A Igreja, desde a virada do século, vive emparedada entre duas forças: de um lado, a contínua laicização de certas camadas da sociedade e, de outro, a ocupação do vácuo por pastores neopentecostais, especialmente em países até recentemente de maioria católica. Como bem disse o argentino e lembra Luiz Gonzaga Belluzzo à página 16, “mais do que o ateísmo, o desafio é responder adequadamente à sede de Deus de muitos, para que não tenham de ir saciá-la com propostas alienantes ou com um Jesus sem carne e sem compromisso”.
Ao contrário dos dois antecessores, combateu os abusos sexuais na Igreja e protegeu os desvalidos
Francisco não conseguiu extirpar os abusos sexuais ignorados por Bento XVI, mas fez o que estava ao seu alcance. Além de pedir desculpas públicas às vítimas de pedofilia, levou a cabo a expulsão de clérigos acusados de crimes, a começar por Theodore McCarrick, cardeal nos Estados Unidos condenado por violação de menores. Em 2018, pronunciou um de seus mais contundentes discursos sobre o tema. “Fique claro que a Igreja, perante essas perversidades, não poupará esforços, fazendo tudo o que for necessário para entregar à Justiça todos aqueles que tenham cometido tais delitos.” Reservou ainda um conselho aos abusadores: “Convertei-vos, entregai-vos à justiça humana e preparai-vos para a justiça divina”. No ano seguinte, o Vaticano criou uma comissão e suspendeu o segredo pontifício das investigações internas a respeito dos crimes de abuso cometidos por clérigos. Em janeiro deste ano, em sua última intervenção no assunto, Bergoglio concluiu a dissolução do Sodalitium Christianae Vitae, comunidade religiosa fundada no Peru, em 1971, por Luis Fernando Figari que se ramificou pelas Américas e enfrentava processos de abusos sexuais e psicológicos.

O Sínodo da Amazônia demarcou a preocupação ambiental. A comunidade fanática de Figari acabou dissolvida em janeiro deste ano – Imagem: Sínodo da Amazônia/Oficial e Redes Sociais/Interpol
A visão de mundo de Bergoglio está resumida, porém, nas três encíclicas publicadas durante o pontificado e na empreitada conhecida como a Economia de Francisco, reunião de economistas, sob a coordenação do Nobel Joseph Stiglitz, para discutir alternativas ao modelo excludente em vigor no planeta. Em Lumen Fidei (A Luz da Fé), Laudato Si’ (Louvado Sejas) e Fratelli Tutti (Todos Irmãos), o papa defendeu a equidade social, a paz e o meio ambiente. “Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum ser humano sem a dignidade que o trabalho dá”, afirmou em 2014. A preocupação ambiental seria ainda evidenciava em outras duas iniciativas. Em 2019, o Sínodo da Amazônia reuniu em Roma lideranças religiosas e sociais de países que abrigam a floresta. Em 2022, na esteira do Sínodo, o pontífice criou o posto de cardeal para a região e nomeou Leonardo Steiner, então arcebispo de Manaus, um gesto de forte simbolismo. “Nenhum papa nos alertou tanto e nos convidou tanto a cuidarmos da casa comum, a cuidarmos da natureza”, recordou Steiner. “O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto”, afirma a holística Laudato Si’. “E não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social. De fato, a deterioração do meio ambiente e da sociedade afeta de modo especial os mais frágeis do planeta.”
“O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto”, escreveu na encíclica Laudato Si’
Em Fratelli Tutti, escancara-se a crítica ao neoliberalismo. “Abrir-se ao mundo”, diz o texto, “é uma expressão de que, hoje, se apropriam a economia e as finanças. Refere-se exclusivamente à abertura aos interesses estrangeiros ou à liberdade dos poderes econômicos para investir sem entraves nem complicações em todos os países. Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único (…) A sociedade cada vez mais globalizada nos torna vizinhos, mas não nos faz irmãos.”

No cabo de guerra do poder no Vaticano, o papa Francisco esforçou-se por ampliar o papel das mulheres nas estruturas eclesiásticas – Imagem: Carl de Souza/AFP
Segundo os relatos oficiais, Francisco teve uma morte serena. Agradeceu e deu um tchau ao enfermeiro Massimiliano Strapetti antes de fechar os olhos pela última vez. O funeral, iniciado com a foto do caixão aberto na terça-feira 22, prossegue até o sábado 26. Na sequência, começa o conclave para escolher o sucessor, evento com duração de 15 a 20 dias. Apesar de ter nomeado 108 dos 135 cardeais habilitados a votar, não há garantias de que o próximo papa levará adiante o projeto reformista de Bergoglio. Religiosos brasileiros apostam em um nome moderado, alguém capaz de conter a fúria das alas reacionárias, incomodadas não só com o avanço dos costumes, mas com a exposição das mazelas do prelado, sem retroceder ao período pré-Francisco. A bolsa de apostas corre solta em Londres e o elevado número de papáveis evidencia as divisões internas e a complexidade de se encontrar um substituto capaz de fazer frente à popularidade de Francisco e impor uma marca pessoal. Em 2013, Bergoglio era uma escolha improvável e sua eleição surpreendeu o mundo. Logo após a nomeação e ante uma figura desconhecida, circularam boatos de que se tratava de um conservador a serviço da sanguinária ditadura argentina. No fim, Francisco revelou-se um peronista, apaixonado por futebol, o mais “divino” dos esportes, bonachão e genuinamente interessado em acolher os jovens. Foi um papa pop, o homem certo, no lugar certo, na hora certa. Para quem acredita, sua eleição foi a prova de que, ao menos naquela ocasião, Deus escreveu certo por linhas tortas. Para quem não acredita, foi um alívio. •
Publicado na edição n° 1359 de CartaCapital, em 30 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O evangelho de Francisco’