Em 1º de dezembro completou-se 4 anos do massacre de Paraisópolis, quando a polícia de São Paulo cercou e atacou com brutalidade o Baile da DZ7, matando 9 jovens e deixando outros 12 feridos. Um protesto na Av. Paulista marcou a data a fim de que esse crime não caia no esquecimento e, principalmente, para exigir justiça. Dos 31 policiais envolvidos na ação, 13 respondem judicialmente, mas seguem em liberdade.
A manifestação, convocada pelo Movimento de Familiares das Vítimas do Massacre em Paraisópolis, e apoiado por diversos outros movimentos, foi marcada pelas fotos e cartazes lembrando as vítimas: Gustavo, Denys Henrique, Marcos Paulo, Dennys Guilherme, Luara Victória, Bruno Gabriel, Gabriel Rogério, Eduardo e Mateus.
No próximo dia 18 ocorrerá a segunda audiência de instrução do processo que apura as responsabilidades dos PMs pelas mortes das vítimas. A Justiça ouvirá testemunhas para decidir se levará os policiais a júri popular.
Maria Cristina Quirino Portugal, mãe de Denys Henrique – um dos jovens mortos pela polícia em Paraisópolis – teve uma emocionante conversa com o Opinião Socialista. Ela falou sobre a dificuldade em relembrar uma parte de sua vida que o Estado violou, ressaltou a importância da união com outras mães que passam pela mesma dor que ela, pontuou a dificuldade de enfrentar o Estado assassino e ressaltou o trabalho do Centro de Arqueologia Forense da Unifesp (CAAF/Unifep) nessa luta. Por fim, falou sobre a expectativa sobre a audiência que acontece no próximo dia 18.
Cristina Quirino foi, por muitos anos, operária terceirizada no setor químico. Quando seu filho foi morto, trabalhava como vendedora em uma loja de eletrodomésticos e também fazia consertos. Ela estava se organizando para ter seu próprio negócio de consertos e revendas de eletrodomésticos. Dennys estava aprendendo com ela a fazer consertos. A polícia assassina, braço armado do Estado, interrompeu esse laço entre mãe e filho, e mudou por completo a vida de Cristina, como você verá na entrevista.
Quem era a Cristina Quirino antes e quem é a Cristina Quirino hoje, depois da perda do Dennys e do processo de luta social que você se envolveu?
Para mim é quase impossível falar da Cristina de antes. Às vezes, são as atividades do movimento que conseguem me relembrar de uma parte da minha vida que, diretamente, o Estado violou. Hoje me enxergo a Cristina mãe e política, mas tive que deixar de lado aquela mãe que eu era. Para mim é muito difícil falar sobre isso. Hoje mesmo recebi um vídeo da minha mãe, estava sem falar com ela há dois dias, sendo que ela fez uma cirurgia. Por causa da luta, não pude estar com ela. Pedi perdão a ela por isso.
Você falou que o Estado violou a sua vida. O que isso quer dizer?
O Estado mata a gente, quando mata um filho nosso. Somos obrigadas a morrer também. Eu fui obrigada a deixar de ser aquela mãe que eu era. Hoje mesmo, pedindo uma ajuda para uma amiga em uma edição de vídeo ela disse: “amiga, pode ser mais tarde? Pois estou indo à piscina do Sesc”. Eu disse ‘que maravilha’. Ai lembrei que eu tinha carteirinha do Sesc, que ia ao Sesc com os meus filhos. Isso são coisas que o Estado arrancou, tirou de mim. Não foi porque eu quis, foram eles que me colocaram nessa situação. Não deixei de fazer as coisas que gostava porque eu quis. Não por livre e espontânea vontade. De repente, dormir mãe de 4 filhos e acordei mãe de 4 filhos, sendo um morto pelo Estado. Tive que aprender a lutar contra essa violência estatal.
Como tem sido essa luta?
É muito difícil, ainda mais quando você não sabe de nada, não entende nada da política e precisa se enfrentar com uma política cruel de mortes pela polícia. Às vezes, nos focamos muito na nossa pauta, mas aí entra os movimentos sociais que nos apoiam e nos ajudam a fazer a conexão com as outras pautas, que também são de responsabilidade do Estado. Isso é fundamental e nos fortalece. Pois no começo me senti muito sozinha na luta, às vezes ainda me sinto assim, mesmo arrodeada de pessoas maravilhosas, pela dificuldade de se enfrentar com o Estado que matou os nossos filhos. Mas eu determinei para mim mesma – quando meu filho foi assassinado, que entendi que foi ilegal, ilegítimo, que o Estado não tem o direito de matar – que seria uma pedra no sapato do Estado, que a partir dali ia aprender a bater de frente. Cobrar justiça seria o sentido da minha vida.
Como é a relação, a construção de laços, com as outras mães que perderam seus filhos?
A gente se une, depois que somos jogadas se querer nessa situação pelo Estado. Nos encontramos nas ações, nos atos, em atividades políticas. A gente se apoia uma na outra. Mas é muito difícil. Tem mães que não conseguem lutar, por medo, pois a polícia que matou o filho dela segue atuando na comunidade. Outras entram em depressão. Por isso, esse laço, essa união é necessária, porque juntas somos mais fortes. Minha tarefa é ajudar nesse fortalecimento, mostrar que precisamos denunciar, sim. Sem contar que esses espaços também ampliam a nossa visão.
Em que sentido?
Eu falo sempre que tinha uma venda nos olhos que me impedia de enxergar muitas coisas que aconteciam ao meu redor. Não era porque eu não queria enxergar, era porque eu não dava atenção. Mas eu sabia o que acontecia. Tive amigos que perderam seus filhos assassinados pela polícia na Brasilândia, bairro onde eu morava. Depois do assassinato do meu filho, vi a quantidade de mães que sofrem como eu. Tiraram a venda dos meus olhos. Eu tinha a visão de que a polícia era a proteção da sociedade civil. Eu educava meus filhos dizendo que eles tinham que respeitar a polícia, que a polícia era a lei, a proteção da nossa família. Mas quando me entregaram meu filho morto, dentro de um saco plástico, foi um choque de realidade muito grande na minha vida. A polícia era a profissão que eu venerava, idolatrava. Era Deus no céu e a polícia na terra por nós. Essa era a minha visão. De repente, meu filho é assassinado por eles de forma cruel, desumana e inocentemente. Mesmo que ele não fosse inocente, eles não teriam o direito de matar o meu filho.
A violência da polícia é uma política de Estado?
Sim. Quando meu filho foi assassinado, iam-se completar 16 anos dos crimes de maio. Isso mexeu muito com a minha cabeça. Há 16 anos houve um massacre, uma chacina em São Paulo, um movimento de pessoas se levantou para cobrar o fim dessa política de mortes. O que aconteceu? Nada. A polícia seguiu agindo da mesma forma. Porque se tivesse acontecido alguma mudança, meu filho não teria sido assassinado. Há 16 anos, quando os filhos das mães de maio foram assassinados, o Denys estava dentro do meu ventre. Meu filho viveu 16 anos para se repetir a história. Não está tendo punição aos assassinos e o Estado segue com a sua política de violência.
Este ano no Brasil vimos chacinas cometidas pela polícia em vários estados, em governo da direita e dos ditos de “esquerda”. Como você avalia isso?
Em um evento que participei com a presença de Silvio Almeida, Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, disse que essa democracia que está aí matou o meu filho. Tantos os governos de direita e de esquerda não respeitam os Direitos Humanos. Tem muita coisa errada. João Doria, então governador de São Paulo à época, defendeu a ação da polícia em Paraisópolis que tirou a vida de nossos filhos. Hoje não existe uma democracia para todos e tantos os governos de direita como de esquerda fazem com que isso seja assim. Essa democracia é para quem? Porque para mim ela já não serve, matou me filho.
No próximo dia 18 acontece a segunda audiência de instrução do processo. Qual a expectativa?
O juiz vai ouvir as testemunhas de acusação, as testemunhas de defesa e os réus. Para depois decidir se o caso vai a júri popular ou não. O caso está na justiça comum, 12 pessoas envolvidas na operação já são rés no processo. Mas existe uma possibilidade remota do juiz entender que eles agiram em legítima defesa, como fez a Corregedoria da Polícia Militar, já que eles são o braço armado do Estado, e o caso voltar para a Justiça Militar. E lá eles não vão responder como cidadãos civis. Lá eles já foram absolvidos. Fazemos a defesa de que vá a júri popular, porque foi crime premeditado. A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo postou, um mês antes, uma notícia falando que ia ocorrer a Operação Saturação na comunidade Paraisópolis, depois do assassinato do sargento Ronald Ruas, para ‘combater o crime organizado’. Mas não foi só isso. A comunidade começou a sofrer repressões, ameaças, entraram nas casas das pessoas, mataram outros jovens antes do nossos. Foram 30 dias articulando essa ação, como demonstra os estudos do Centro de Arqueologia Forense da Unifesp (CAAF/Unifep). No 1º de dezembro, executaram o plano que já vinha sendo elaborado para se impor dentro da comunidade, quem pagou por isso foram os nossos filhos.