O Espírito Hacker e a Última Fronteira da Democracia
Por que o hacktivismo pode salvar o mundo que o capitalismo de plataforma tenta destruir
por Reynaldo Aragon, Eden Cardin e Uirá Porã
Eles não pedem licença, nem esperam aplausos. Nos porões da rede, seguem reprogramando o mundo com linhas de código e convicção. Em julho, essa resistência invisível ocupa Brasília. Porque ainda é possível reinventar a democracia — mas só se ousarmos hackear o presente.
O tempo das máquinas cínicas e o silêncio das democracias.
Vivemos sob a arquitetura invisível de sistemas que não elegemos, não compreendemos e tampouco conseguimos regular. São máquinas abstratas de decisão que operam com velocidade imune ao debate público, organizando o fluxo da informação, a moldura da opinião e, cada vez mais, o próprio campo da sensibilidade. O algoritmo já não apenas sugere: ele governa. Em nome da personalização, reduz a complexidade do mundo a bolhas calculadas. Em nome da eficiência, reconfigura os afetos, os vínculos e os processos cognitivos.
A democracia, lenta, ritualizada, baseada em dissenso e escuta, aparece como um artefato obsoleto diante da lógica performática das plataformas.
Não há golpe. Há consenso algorítmico. Não há censura. Há exclusão automatizada. Não há partido. Há segmentação e público-alvo. A esfera pública, que antes se organizava em torno da palavra, da praça e da contradição, foi redesenhada por arquiteturas opacas de poder computacional, gerenciadas por corporações cuja legitimidade se sustenta apenas na ubiquidade e no lucro. A política, encurralada entre o espetáculo e a vigilância, submete-se às métricas de engajamento como quem negocia oxigênio. E o comum, outrora construído por lutas e mediações coletivas, agora se dissolve na lógica do feed.
Neste cenário, a democracia não sangra como nos tempos dos tanques. Ela silencia. Se esvazia. Se automatiza. A cada decisão tomada por um sistema sem rosto, a soberania se retrai. A cada dependência tecnológica aprofundada, o Estado se curva. A cada dado extraído sem consentimento, o cidadão se torna um perfil, incorporado a um segmento, o corpo vira protocolo, a subjetividade se rende.
Mas enquanto os impérios digitais avançam, há quem habite as brechas. Há quem se recuse a aceitar o mundo como ele está sendo programado. Há quem se dedique a decifrar, expor, desmontar e reinventar os sistemas que organizam nossas vidas. São hackers. São as pessoas hacktivistas. As legítimas inventoras e inventores da internet, o povo originário do digital. São as redes invisíveis de uma resistência silenciosa que, sem capital, sem marketing, sem concessões, insiste em manter viva a ideia de que outro digital é possível.
Antes de ser uma ameaça, essa rebelião técnica e ética é a última linha de defesa da democracia. O espírito hacker não quer capturar o poder. Ele quer libertar o comum. Ele não disputa governo, mas a infraestrutura do sensível. Não busca dominação, mas liberdade informacional. Em tempos de captura total, a cultura hacker aparece não como ruído, mas como chance. Não como ruína, mas como reinício.
Cultura hacker: o ethos rebelde da liberdade digital.
Antes de ser código, a cultura hacker é linguagem. Antes de ser técnica, é ética. E antes de ser um gesto, é uma recusa. Recusa à obediência cega, à opacidade dos sistemas, à normalização da ignorância sobre aquilo que governa nossa experiência digital. O hacker não é um criminoso: é alguém que se recusa a aceitar as caixas-pretas como destino.
A cultura hacker nasce do impulso de explorar, de compreender, de romper as fronteiras impostas por sistemas fechados. Ela desconfia da autoridade, especialmente da autoridade que se oculta por trás de interfaces amigáveis e políticas de uso não-lidas. Sua prática é indisciplinada, anárquica no melhor sentido do termo: busca o saber como forma de insubmissão, a autonomia como método, o erro como caminho. Seu território não é o manual, mas o improviso.
Há beleza no modo como a cultura hacker enxerga o mundo. A beleza de quem acredita que sistemas foram feitos para ser desmontados, estudados, modificados, compartilhados. De quem vê elegância na simplicidade de um programa de computador bem-escrito, na reprogramação de uma função que parecia impossível. De quem aposta no conhecimento livre como fundamento de qualquer possibilidade de emancipação. O hacker não está em busca de fama, nem de crédito. Está perseguindo o entendimento.
Sua prática desafia o mundo corporativo por um motivo simples: enquanto o mercado busca controle, escassez e lucro, a cultura hacker promove abertura, abundância e liberdade. Onde o capitalismo de plataforma transforma usuários em dados, a cultura hacker transforma usuários em autores. Onde as empresas criam jardins murados, os hackers abrem as portas, desenham mapas e rompem fronteiras.
Trata-se de uma estética da insubordinação. Uma ética do cuidado com o comum. Uma política da criação distribuída. A cultura hacker é o oposto da cultura do domínio. Ela não opera por centralização, mas por rede. Não por vigilância, mas por partilha. Não por segredo, mas por documentação pública. Sua radicalidade está em mostrar que todo sistema pode ser alterado — e que toda autoridade precisa ser interrogada.
Neste sentido, a cultura hacker é profundamente democrática. Não no sentido liberal e institucional da democracia, mas no sentido vivo, denso e coletivo de quem acredita que a liberdade é incompatível com o monopólio da técnica. Em um mundo onde saber programar é quase o mesmo que saber respirar, os hackers são aqueles que ainda querem que todos respirem juntos.
Hacktivismo: a política no código-fonte.
Quando a técnica se encontra com a ética, nasce o hacktivismo. Mais do que um rótulo, é uma prática. Mais do que uma estratégia, é uma posição no mundo. O hacktivismo não nasce do desejo de causar ruído, mas de abrir espaços. É política em sua forma mais crua: feita sem permissão, sem blindagem institucional, sem patrocínio. É resistência que se escreve em linguagem de máquina, mas também em protocolos de liberdade, em servidores autônomos, em comunidades auto-organizadas que operam nos subterrâneos da internet comercial.
Mas essa insurgência não surgiu do nada. Suas raízes estão fincadas na própria invenção da computação e da internet. Ada Lovelace, ao escrever o primeiro algoritmo para uma máquina de cálculo, intuía que não bastava a linguagem de máquina, os códigos precisavam expressar lógica, arte e imaginação através da poesia escrita. Tim Berners-Lee, ao propor a World Wide Web, sonhava com uma rede aberta, distribuída, democrática. Ambos operaram contra a lógica hegemônica, propondo estruturas abertas e cooperativas que, mais tarde, seriam capturadas pelas engrenagens do mercado. O que hoje chamamos de hacktivismo é, também, uma retomada desses princípios fundadores: abrir o que foi fechado, reencantar o digital como território do comum.
Hacktivistas não pedem licença. Criam espaços quando não os há. Libertam o que foi fechado. Rastreiam códigos para denunciar estruturas de dominação. Desenvolvem redes que não se rendem à vigilância. Traduzem o velho lema subversivo para a linguagem digital: se não há lugar para nós, criaremos um com nossas próprias mãos. E com isso, desafiam uma ordem que se pretende inquestionável.
Essa prática ganhou contornos políticos ainda mais evidentes com o surgimento do movimento do software livre, nos anos 1980, liderado por Richard Stallman. Frente à privatização do conhecimento técnico, Stallman propôs quatro liberdades fundamentais — usar, estudar, modificar e compartilhar — que subverteram a lógica da propriedade intelectual e do consumo passivo. Em vez de usuários, pessoas. Em vez de produtos, processos cooperativos. O software livre mostrou que colaboração é mais potente que competição, e que conhecimento compartilhado gera soluções mais resilientes.
Diferente da caricatura midiática que os pinta como sabotadores ou piratas cibernéticos, os hacktivistas são os herdeiros dos grandes projetos utópicos do século XX, agora reescritos em forma de rede. São os operários do comum digital. Seus alvos não são pessoas, mas estruturas opressivas. Suas armas não são invasões por vaidade, mas ferramentas de liberdade. Seus objetivos não são a destruição, mas a abertura radical.
A ironia é que, ao demonstrar sua força, o software livre foi cooptado. Hoje, 80% das tecnologias que sustentam as plataformas das big techs se baseiam em software livre — como lembra Sérgio Amadeu. O Android, sistema mais usado do planeta, é uma carapaça do Linux manipulada pela Google. O GitHub, berço de milhares de projetos colaborativos, foi comprado pela Microsoft. O que era símbolo de liberdade virou base da vigilância. O problema não foi sua apropriação — isso o capitalismo sempre fará. O verdadeiro golpe foi impedir que os governos também o fizessem.
No Brasil, hackers, ativistas e servidores públicos ousaram construir uma política digital soberana. O Marco Civil da Internet foi celebrado como Constituição da rede. A Política de Software Público demonstrou que o Estado poderia ser também um criador de tecnologias livres, articulando eficiência, transparência e autonomia. Por um breve momento, o Brasil foi referência global em soberania informacional. Interromper esse ciclo era estratégico. Será que o Golpe Parlamentar de 2016 foi apenas pelo petróleo?
Quando criam sistemas de comunicação protegidos por criptografia de ponta, não estão se escondendo: estão defendendo o direito à privacidade em um mundo onde tudo virou dado. Quando publicam documentos vazados que revelam crimes de Estado ou abusos corporativos, não estão traindo, mas restaurando o princípio da transparência. Quando desenvolvem softwares livres, não estão apenas programando: estão oferecendo ao mundo a possibilidade de escolha em um oceano de plataformas proprietárias.
O hacktivismo é, portanto, uma forma de luta. E como toda luta política verdadeira, ela implica risco, coragem e um profundo senso de justiça. Não há glamour. Não há recompensa. O que há é uma urgência moral diante de um mundo que naturalizou o sequestro da informação, o controle dos afetos e a manipulação da percepção pública. O hacktivismo não romantiza a técnica. Ele a devolve ao seu lugar: uma ferramenta a serviço da liberdade.
Neste tempo em que a política se tornou espetáculo e a cidadania virou um dado, o hacktivismo se levanta como gesto de reumanização. E mais do que isso: como prova de que o digital nasce livre num mundo já opressor — e precisamos fazê-lo de novo. Se fomos capazes de criar uma rede livre global, um marco civil, e ferramentas que hoje sustentam as próprias estruturas do capitalismo, também podemos hackeá-las de volta. Reverter a lógica da manipulação em redes de cuidado. Transformar o vício calculado em colaboração entre pessoas. Reencantar a internet como espaço de liberdade e alegria compartilhada. O hacktivismo restitui ao digital o seu caráter de território em disputa — e nos lembra que nós somos o coração do sistema, que o futuro é livre e que a felicidade é colaborativa.
Por que o mainstream teme os hackers?
O hacker é perigoso não porque invade sistemas, mas porque revela o que eles escondem. Ele é temido porque arranca a máscara de neutralidade das máquinas, expõe a lógica política embutida nos algoritmos, desfaz a naturalização dos códigos que organizam o mundo. O que o sistema não perdoa não é a violação, mas o desvelamento.
A cultura dominante teme os hackers porque eles desobedecem. Não às leis, mas às conveniências. Eles não rezam a cartilha da inovação moldada por investidores, nem se curvam ao deslumbramento com a tecnologia como fim em si. Eles não estão no palco das conferências, mas nos porões onde a liberdade ainda se escreve em comandos. O hacker não trabalha para o sistema. Ele trabalha contra o fechamento do mundo.
A criminalização do hacker não é fruto de mal-entendidos. É um projeto.
Ao longo das últimas décadas, os grandes meios de comunicação, as forças de segurança e as corporações construíram uma figura pública para o hacker: um jovem antissocial, sombrio, irresponsável. Um ser sem rosto, sem ética, sem futuro. O objetivo sempre foi o mesmo: esvaziar o conteúdo político de sua prática e transformá-lo em ameaça. Era preciso deslegitimar o gesto para proteger a estrutura.
Enquanto isso, os verdadeiros predadores digitais — os CEOs de plataformas, os engenheiros da manipulação algorítmica, os arquitetos da vigilância em tempo real — foram alçados ao status de gênios, inovadores, visionários. A perversidade da equação está em quem se torna o inimigo público: não quem lucra com a extração massiva de dados e a manipulação da opinião pública, mas quem denuncia o funcionamento da engrenagem.
O hacker é perseguido porque desorganiza. Porque mostra que o sistema é um arranjo político, não uma ordem natural. Porque ao publicar um vazamento, criar uma ferramenta livre, montar um servidor autônomo ou impedir uma espionagem silenciosa, ele toca naquilo que o neoliberalismo mais teme: a possibilidade de que o comum não seja capturado.
O mainstream teme os hackers porque eles desafiam a falsa dicotomia entre tecnologia e política. Eles mostram que todo design é ideológico. Toda plataforma é uma escolha. Todo sistema é uma disputa. E que enquanto aceitarmos a narrativa de que não há alternativas, estaremos sempre presos à programação do poder.
Ser hacker, nesse contexto, é um ato profundamente político. E por isso mesmo, profundamente perigoso para quem se alimenta da passividade.
O que está em jogo: a guerra informacional, o algoritmo como juiz e a nova servidão.
O que está em curso não é apenas uma transformação tecnológica. É uma guerra. Uma guerra silenciosa, difusa, de baixa intensidade, mas de altíssimo impacto. Uma guerra pelo controle da informação, da percepção e da subjetividade. E nela, os algoritmos deixaram de ser ferramentas para se tornarem agentes. Juízes invisíveis de tudo o que vemos, ouvimos, sentimos e desejamos.
A velha soberania baseada em territórios e exércitos foi substituída por uma nova forma de dominação: a soberania algorítmica. Hoje, quem controla o código, controla a narrativa. Quem detém a infraestrutura, define os limites do imaginável. Quem desenha os sistemas de recomendação, estrutura o campo do real. A desinformação não é mais exceção. É método. É modelo de negócio. É arma geopolítica.
Não estamos mais diante apenas de governos autoritários ou censura explícita. Estamos diante de corporações que sequestram a função de mediação social, transformando a comunicação em modelo de previsão comportamental. O que circula nas redes não é neutro. É produto de cálculos invisíveis, calibrados para extrair atenção, manipular afetos e maximizar lucros.
O tempo do pensamento é atropelado pelo tempo do engajamento.
Nesse cenário, a democracia não morre com tanques, mas com métricas. A opinião pública deixa de ser formada por debate e passa a ser moldada por impulsos, vieses e bolhas. A cidadania é dissolvida na lógica do usuário. A escuta é substituída pelo clique. O voto ainda existe, mas quem define o terreno da decisão são os sistemas opacos que selecionam o que aparece e o que desaparece na tela de cada um.
E a servidão já não é imposta à força. Ela é voluntária, gamificada, customizada. Aceita com termos de uso que ninguém lê, com interfaces sedutoras, com recompensas emocionais imediatas. É uma servidão que se disfarça de conveniência. Um cativeiro com Wi-Fi.
É nesse ambiente que o hackativismo ressurge como força de resistência. Porque ele rompe com a lógica do consumo passivo, porque recusa a delegação cega, porque exige o direito de saber como funciona o mundo que nos governa. Ele é uma lembrança viva de que toda ferramenta pode ser reprogramada. Que todo código pode ser reescrito. E que a liberdade, no século XXI, passa pelo conhecimento técnico e pela ousadia política de retomar o controle.
O que está em jogo é mais do que privacidade. É mais do que regulação. É a própria capacidade de existir como sujeito político em um ambiente digital cada vez mais moldado para neutralizar a dissidência, amortecer o pensamento crítico e silenciar a imaginação coletiva. Se a democracia ainda importa, é urgente disputar o território onde ela hoje está sendo corroída: a informação.
Um manifesto necessário: a cultura hacker como resistência.
Não se trata mais de proteger a internet. Trata-se de proteger o mundo de uma internet sequestrada. A cultura hacker não é uma lembrança dos primórdios digitais. É uma pulsação subterrânea que sobreviveu ao assalto das plataformas, à criminalização pelo mercado, ao desprezo da política institucional. Uma ética que não se rendeu ao capital, nem à celebridade. Uma rebeldia que seguiu viva, mesmo apagada dos holofotes, mesmo esquecida pelas narrativas dominantes.
Neste tempo de plataformas absolutas e democracias exauridas, a cultura hacker emerge como contraimaginário. Como gesto de desprogramação. Como potência de reinvenção coletiva. Ela não quer reformar os sistemas dominantes. Quer desmontá-los, expor suas lógicas e construir alternativas. A cultura hacker é aquilo que nos resta quando tudo mais já foi cooptado.
Ela opera no anonimato, nos fóruns obscuros, nas redes distribuídas, nos encontros autogeridos. Ela sobrevive nas oficinas em centros culturais periféricos, nos servidores caseiros, nas criptografias ensinadas entre companheiros, nos códigos compartilhados com generosidade radical. O que move essas pessoas não é vaidade. É uma consciência aguda do risco que corremos se entregarmos a totalidade da vida digital às mãos do lucro e da manipulação.
A cultura hacker é resistência porque ela não se submete. Porque ela insiste em abrir o que o poder quer manter fechado. Porque ela denuncia o monopólio das narrativas e oferece ferramentas para que outros também denunciem. Porque ela constrói pontes onde só havia muros. Porque ela cria, onde a lógica dominante apenas replica.
Mas essa resistência é solitária. É marginal. É silenciosa. O hacker não recebe medalhas. O hacktivismo não ganha verbas públicas. O software livre não aparece nos editoriais dos jornais. E, no entanto, é dessa rede invisível que depende o futuro da liberdade informacional. São esses corpos cansados, esses teclados anônimos, esses servidores improvisados, que sustentam o último bastião de autonomia no mundo digital.
Este texto é, portanto, uma homenagem e um chamado. A quem luta nos bastidores para manter as janelas abertas. A quem acredita que conhecimento deve ser partilhado, e não mercantilizado. A quem sabe que código é cultura, que rede é território, que protocolo é poder. A cultura hacker pode parecer pequena diante das big techs. Mas carrega em si a única coisa que elas jamais poderão comprar: o espírito da liberdade.
E é desse espírito que vamos precisar se quisermos reencantar a ideia de democracia na era da hiperconectividade.
Exemplo vivo: o Encontro Soberania Já! em Brasília como ponto de virada.
A resistência hacker pode ser silenciosa, mas ela está viva. E vai se encontrar em Brasília.
Nos dias 8 e 9 de julho de 2025, ativistas, desenvolvedores, comunicadores, parlamentares, pesquisadores e lideranças sociais ocuparão a capital para construir algo que ainda não existe: um Plano Nacional de Soberania Digital. Esse não será um seminário institucional. Será um gesto de insubordinação democrática. Uma tentativa concreta de reverter o sequestro da infraestrutura da informação pelo mercado e por forças antidemocráticas. Uma declaração de que o futuro digital do Brasil não será decidido a portas fechadas por CEOs estrangeiros, mas a céu aberto, por quem luta, cria e compartilha.
O Encontro “Soberania Já!” nasce da aliança entre a cultura hacker, os Pontos de Cultura, os movimentos populares e a inteligência coletiva espalhada nas periferias da rede. Nasce como resposta à aliança sombria entre big techs e extrema-direita. E nasce como projeto de país, como tentativa histórica de fundar um novo pacto: a informação como direito, a tecnologia como ferramenta do comum, a internet como território de luta por liberdade e não por lucro.
Ali, onde antes se escreviam leis a partir de lobbies, vamos escrever possibilidades a partir de coletivos. Onde os algoritmos definem eleições, vamos debater transparência, justiça e regulação. Onde a infraestrutura está entregue à dependência tecnológica, vamos projetar autonomia. Serão dias para reaprender a pensar o digital como campo político. Para afirmar que a comunicação não pode mais ser um campo neutro. Que a arquitetura da rede é inseparável da arquitetura da democracia.
Mais do que um evento, o Encontro será um rito. Um ritual de retomada. Uma chance rara de fazer convergir saberes que andam dispersos. De conectar os que resistem no código com os que resistem na terra, nas favelas, nas universidades, nas quebradas, nos coletivos indígenas, nos assentamentos. Porque a soberania digital não se fará apenas com routers e servidores. Ela será feita de alianças.
E se, até aqui, a cultura hacker tem resistido como subterrâneo, talvez este seja o momento de trazê-la à luz. Não como modismo. Não como estética. Mas como fundamento político de um futuro onde a democracia não seja um ruído no algoritmo, mas a própria lógica da sociedade em rede.
Brasília pode ser o início. A curva. O ponto de inflexão. Se soubermos escutar o que será dito nas entrelinhas dos debates, dos códigos, dos corpos presentes, talvez possamos sair dali com mais do que um plano. Com um novo horizonte.
O tempo é agora — e o futuro depende da rebelião informada
Nenhum império dura para sempre, mas todos parecem eternos até que alguém ouse desafiá-los. As plataformas que hoje governam o espaço público global foram erguidas com promessas de conexão, liberdade e inovação. Mas entregaram vigilância, desinformação e dependência. No lugar de pontes, construíram cercas. No lugar de autonomia, ofereceram atalhos embalados em plástico reluzente. A servidão se disfarçou de interface intuitiva.
Mas mesmo sob a névoa da distração infinita, há quem permaneça desperto. Há quem nunca tenha saído da luta. Há quem conheça o pulso oculto das máquinas e saiba que, por trás da tela, pulsa um mundo de decisões políticas travestidas de neutralidade. Esses são os corpos invisíveis que escrevem alternativas. Que constroem redes descentralizadas. Que mantêm viva a ideia de que o digital pode ser uma ferramenta de libertação — e não de dominação.
Eles não têm marketing, não têm departamento de relações-públicas, não têm investidores. Têm tempo roubado das noites, conexões instáveis, cafés frios e convicção. Têm a certeza de que se não forem eles, não será ninguém. Que não há democracia possível sem soberania sobre o fluxo da informação. Que não há liberdade onde há dependência tecnológica. Que o direito de existir como sujeito político no século XXI passa por conhecer, controlar e disputar a arquitetura que governa a circulação de tudo: das palavras, das ideias, dos afetos, dos corpos.
Mas a cultura hacker não vai salvar o mundo sozinha. Ela pode impedir que ele seja programado para a obediência. Quer manter abertas as possibilidades, do desvio à criação De ruptura. De reinício. E talvez seja justamente por isso que ela importa tanto.
Não haverá decreto, nem algoritmo, nem salvador. Haverá encontros como o de julho. Haverá linhas de código escritas com raiva e amor. Haverá coletivos, oficinas, redes, blogs, arquivos, zines, resistências invisíveis. Haverá o que conseguirmos construir juntos.
O tempo é agora. E cada linha de código, cada servidor livre, cada plataforma autônoma, cada pequeno gesto de rebelião informada é uma trincheira a mais contra o colapso. Não por nostalgia de um passado idealizado, mas por aposta em um futuro onde o comum não será privatizado, onde a democracia não será um recurso escasso, onde o digital será, finalmente, um território habitável.
Porque ainda é possível reprogramar o mundo.
Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global.
Eden Cardim é jornalista de dados, cientista da computação e desenvolvedor de software livre. Atua na criação de ferramentas e investigações baseadas em dados com foco em interesse público e transparência. Já colaborou com veículos como Brasil 247, Diário do Centro do Mundo (DCM) e Caixa de Ferramentas. É um dos idealizadores do projeto Onde Acontece, voltado ao mapeamento de acontecimentos em territórios periféricos.
Uirá Porã é hacker e gestor público, com atuação no Banco Mundial, no BID e em projetos públicos nas esferas federal, estadual e municipal. Engajado em iniciativas nacionais e internacionais pela soberania digital e emancipação humana, defende o conhecimento livre, os códigos abertos e a colaboração em rede. É sócio-fundador do Instituto Brasileiro de Políticas Digitais – Mutirão, além de co-idealizador do Movimento FeliciLab e do Laboratório do Futuro da UFC.
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