O espetáculo da barbárie
por Dora Incontri
“Toda a vida das sociedades em que dominam as condições modernas de produção aparece como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação. (…) O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens. O espetáculo não pode ser compreendido como abuso do mundo da visão ou produto de técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é a expressão de uma Weltanschauung, materialmente traduzida. É uma visão de mundo que se objetivou.”
Quando Guy Debord, filósofo marxista francês, escreveu a sua obra A sociedade do espetáculo, em 1967, estávamos ainda longe da internet, das redes sociais, dos youtubers e influencers. Era ainda o mundo analógico. No entanto, essa frase acima e todo o resto do livro têm uma atualidade impressionante e até muito mais aplicável à nossa realidade atual.
Vivemos submersos num universo de imagens, vídeos, narrativas e contranarrativas e há um adoecimento mental generalizado, o que, aliás, favorece grandemente a indústria farmacêutica. Mas para além de tudo ser convertido em produto, inclusive nós mesmos (e o próprio trabalho, que muitos de nós exercemos, nos abriga a isso, porque se não tiver divulgação nas redes, não avança), o que observamos dia a dia é a espetacularização da violência.
Basta entrarmos alguns minutos em alguma das plataformas que dominam o mundo ocidental e já vemos desde brigas de trânsito ou cenas de racismo a assassinatos, até imagens de guerras e massacres em tempo real. O mundo virtual – que é o mundo em que nos movemos – virou uma arena romana ou uma praça medieval de humilhações e execuções públicas.
Neste cenário, somos tomados diariamente – pelo menos aqueles que se recusam a perder a sensibilidade e a empatia – por sentimentos de impotência, indignação, depressão e descrença na humanidade. Ou então, vamos criando mecanismos de defesa para não nos conectarmos com tanto morticínio, tantas injustiças e podemos nos esfriar e perder a capacidade de crítica e mobilização.
Nesta última semana, por exemplo, quem frequenta sites e páginas de notícias terá visto cenas aviltantes como a dos venezuelanos sendo escorraçados dos EUA, por Trump, para El Salvador, para aquelas prisões absurdas mantidas pelo presidente Nayib Bukele, que parece ter embolsado 6 milhões de dólares para levar e encarcerar esses infelizes acorrentados, de joelhos – que sequer passaram por qualquer julgamento. Ao mesmo tempo, também assistimos, manietados em nossa impotência, a novos ataques de Israel a Gaza, já destruída, com a população em frangalhos, apesar de um suposto cessar-fogo, num genocídio que nunca cessa.
Somos, assim, arremessados diariamente a assistir o espetáculo da barbárie do mundo. E que podemos fazer? Há os caminhos do adoecimento psíquico ou da justa indignação, ou ainda do trabalho individual e coletivo de conscientização e resistência. Mas tudo parece tão distante de uma via de paz e de respeito mínimo à dignidade humana!
Diz-se por aí – também nas mídias sociais – que devemos alternar em ver páginas de notícias com páginas fofas de animais, para aliviar as tensões e as tristezas. Os animais de fato são fofos, ternos, e nos aquecem o coração. Tanto que hoje, muita gente prefere viver na companhia deles do que na dos humanos. É verdade que eles são incapazes de traição, de agressão gratuita, de qualquer prática sádica de tortura. Ao invés, o que há de histórias e cenas nas redes, mostrando até mesmo tigres, leões, pinguins e tubarões praticando amizade fiel com humanos que os ajudaram, numa gratidão pouco observável entre nós! O que quer dizer isso? O reino animal não está no reino do livre-arbítrio, eles não escolhem entre o “bem e o mal”. Seguem os instintos e, de um ponto de vista espiritual, podemos dizer que os instintos são divinos, representam a imanência de Deus.
Os humanos também têm – assim acredito – essa imanência divina dentro de si, mas por outro lado, estão aprendendo a usar a liberdade individual e coletiva e deixam suas pulsões de morte e violência também virem à tona. Haja terapia, psicanálise e educação para domar essas feras encobertas, que aliás, são a cada dia trazidas à tona pelo estímulo das próprias redes sociais. Ao mesmo tempo que elas retratam a barbárie ainda vigente no mundo e a normalizam, elas podem alimentar os monstros de qualquer um de nós.
Difícil equilíbrio a ser buscado, para não fugirmos pela alienação – e os que estão mais adoentados psiquicamente precisam sim fazer periódicos jejuns de notícias e internet – e nem enveredarmos para engrossar a massa que aplaude a violência, a tortura e a morte. Força para mantermos a luta em pé, serenidade para não nos destruirmos internamente, espiritualidade e afeto para continuarmos, até podermos chegar – e chegaremos – à outra margem da história, em que faremos um mundo mais justo, sensato e humano. Já não estamos muito cansados deste que aí está?
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.