A questão do golpe de Estado, tão importante para a América Latina, é completamente mal compreendida pela esquerda pequeno burguesa. Essa confusão cresceu ainda mais com as manifestações bolsonaristas do 8 de janeiro e também a enorme campanha da imprensa burguesa contra os “golpistas”. Isso voltou a tona agora que a burguesia está descartando o ministro Alexandre de Moraes, que seria a linha de frente desse “combate ao golpe”. No Brasil 247 foi publicado o texto “O golpismo resiste” de Miguel Paiva.
Ele começa: “muitos brasileiros, sobretudo os de classe média, têm mentalidade autoritária. Basta dar uma olhada na nossa História para constatar isso. Depois da nova república os militares e oligarcas em geral passaram a ter a preferência da população. Diga-se população com uma boa parcela de generosidade. Os pobres, negros, mulheres e marginalizados da época não tinham voz, eram subpopulação. Os brancos, héteros, ricos e masculinos decidiam os destinos da nação e quando decidiam fazer uma pequena guerra ou revolta colocavam os jovens e negros à frente das tropas para que morressem defendendo seus princípios, ou seja, os das oligarquias”.
Isso é uma grande incompreensão do funcionamento dos golpes de Estado. O golpe organizado pelo imperialismo se dá justamente contra a maioria da população. A classe média já tende a seguir a posição da burguesia, e isso varia conforme a conjuntura política. Essa “mentalidade autoritária” é uma abstração que esconde a luta de classes que é o que está de fato por detrás dos golpes de Estado. Quem derrubou Vargas foram os EUA, a mentalidade era um fator secundário, o mesmo valeu para Jango e também para Dilma Rousseff.
O argumento identitária também não é válido pelo mesmo motivo. A questão não são os negros, brancos, mulheres, homens e LGBTs. É uma questão de classe. As mulheres de classe média apoiaram o golpe de Estado, os LGBTs influenciados pelo campanha imperialista apoiaram o golpe de Estado. E no fim o principal não foi nem o apoio desses setores, foi de quem realmente detem poder, a imprensa burguesa, os empresários, os banqueiros, o STF, o Congresso.
Outro comentário que demonstra a incompreensão sobre os golpes é sua posição sobre movimentos progressistas: “já não era mais aquela movimentação vinda de mais um pequeno golpe de Estado. Mesmo a revolta dos tenentes em 1922 ou a Intentona comunista em 1935 tinham um sabor de golpe de Estado, de classe média e se limitavam aos quartéis”.
Há uma correlação entre esses eventos e os golpes de Estado, toda tentativa de insurreição é de certa forma o golpe. Mas igualar 1964 ao que aconteceu em 1917 na Rússia ou em 1959 em Cuba é absurdo. O golpe que deve ser criticado é o da direita, do imperialismo.
O problema aqui é traçar um histórico de golpismo na população brasileira, essa tese está completamente errada. Há um histórico de golpismo na burguesia e principalmente do imperialismo. Avaliando os golpes que existiram desde o século XX quase todos foram organizados ou tiveram apoio do imperialismo. 1937, golpe do Estado novo; 1945, golpe contra Vargas; 1954, golpe contra Vargas; 1955; tentativa de golpe contra JK; 1961; tentativa de golpe contra Jango; 1964; golpe contra Jango; 2016, golpe contra Dilma; 2018; prisão de Lula, golpe eleitoral. É toda uma história de opressão do imperialismo.
Ele continua: “mas a mentalidade autoritária continua. Parece que não querem um governo estável e desenvolvimentista. Preferem uma política econômica que favoreça o mercado e pronto. O resto é comunismo. Hoje, a impressão que passa, é que estão à espreita e que qualquer brecha para poder tentar mais um golpe, trazer alguém que desestabilize o governo para que o mercado possa sofrer sua massagem estimulante de volta aos palcos. Não sossegam. Preferem a ameaça de um governo autoritário (que na realidade não os ameaça) a um período de crescimento. Lutam contra a educação e a informação para que o povo que fica não tenha o que dizer nem o que pensar. Melhor assim pra eles”.
Aqui mais uma vez aparece o problema da denúncia abstrata do golpismo, da “mentalidade autoritária”. É preciso deixar claro quem são as forças políticas por detrás do golpe, contra quem é o golpe, para que os trabalhadores possam lutar contra ele. Caso contrário, falar em golpe não serve de nada. Esse é um dos grandes problemas da política da esquerda, eles falam em golpe para justificar as ações do STF. Nos golpes de Estado de verdade o STF não salva ninguém, ele apoia o golpe.
Vejam os casos dos golpes derrotados. Em 1954, quando Vargas se matou, o povo saiu às ruas em massa, ateou fogo nas embaixadas dos EUA e na sede da Globo. A burguesia recuou, não impôs um governo totalmente subserviente ao imperialismo. Em 1961 na tentativa de golpe contra Jango houve uma enorme mobilização no Rio Grande do Sul, Brizola até apareceu com armas na mão. Isso derrotou o golpe. É assim que se derrota uma tentativa de golpe, com mobilização. Os que gritam “golpe!” sem chamar o povo às ruas estão atrapalhando a luta contra o golpe. Ou porque não é um golpe real, ou porque não estão lutando.
A tese da “mentalidade autoritária” é errada porque a luta não deve ser feita contra uma mentalidade. É preciso travar a luta contra os golpistas. Os golpistas são a população de classe média das grandes cidades do País? Não. É o PSDB, o União Brasil, o MDB, o bolsonarismo, a Rede Globo, a Folha de São Paulo, o governo dos EUA, da França, da Inglaterra, as ONGs financiadas pelo imperialismo. É preciso lutar contra isso, travar uma luta política real. Lutar contra uma mentalidade não é o caminho.
Ele conclui: “continuamos aqui vigilantes. Queremos uma democracia e a possibilidade do povo se desenvolver. Com justiça, paz e sem golpes. A vida pode ser animada sem essa instabilidade que só favorece a poucos”.
De fato, é preciso se manter vigilante. Mas, como explicado acima, vigiar os inimigos dos trabalhadores, todos eles. Não adianta olhar apenas para o lado do bolsonarismo quando há poucos anos o grupo que muitos hoje chama de aliado derrubou Dilma e prendeu Lula. O golpe afinal costuma vir dos chamados aliados.