Após o vídeo viral do influenciador Felca, o governo anunciou o envio ao Congresso Nacional de dois projetos de lei voltados para a regulação das plataformas digitais. Embora a repercussão tenha acelerado o anúncio, o episódio apenas colocou em evidência uma agenda que o governo já vinha estruturando, com o objetivo de enfrentar os desafios econômicos e os riscos de segurança associados às big techs.
As iniciativas são distintas, mas complementares. O primeiro projeto trata da regulação econômica das cinco maiores empresas do setor (Google, Amazon, Apple, Meta e Microsoft) e se inspira em legislações da União Europeia. O texto amplia os poderes do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que ganhará uma Superintendência de Mercados Digitais, permitindo agir de forma mais rápida contra práticas que configuram concorrência desleal, como falta de transparência nos buscadores, taxas elevadas nas lojas de aplicativos, venda casada de serviços e direcionamento em meios de pagamento.
O segundo projeto, possivelmente o mais polêmico, aborda a regulação de conteúdo, com foco na proteção do usuário. Plataformas com mais de três milhões de usuários terão regras mais rígidas, enquanto serviços menores terão obrigações reduzidas. Entre as medidas, estão a manutenção de canais de comunicação acessíveis, a remoção de conteúdos ilegais, em casos graves, mesmo sem decisão judicial, e a apresentação de relatórios periódicos sobre prevenção de ilícitos. O texto prevê multas, advertências e, em último caso, a suspensão temporária das plataformas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que será elevada ao status de Agência Nacional de Proteção de Dados.
O governo defende que a regulação aproxima o Brasil das práticas internacionais, mas já recebe críticas em relação ao “risco de censura” devido à possibilidade de remoção de conteúdos sem decisão judicial. Esse ponto deverá gerar críticas da extrema direita, especialmente pela centralização desse poder em uma autoridade estatal já estabelecida. A proposta, no entanto, não pretende abranger a remoção de conteúdos relacionados à desinformação, fake news ou crimes contra a honra, como calúnia e difamação, seguindo a linha do Supremo Tribunal Federal (STF).
O debate em torno desses dois temas não é novo e foi recentemente enfrentado durante a aprovação do PL 2628/2022 na Câmara, voltado para a proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital. Naquela ocasião, a aprovação só foi possível graças a acordos em torno de pontos semelhantes, o que garantiu o apoio da oposição. A resistência da extrema-direita e das big techs evidencia uma clara tentativa de proteger interesses corporativos e políticos em detrimento da segurança digital, do bem-estar das crianças e da própria soberania nacional, colocando lucros e agendas ideológicas acima do interesse público.
Antes de enviar os textos ao Congresso, o governo optou por apresentar os projetos às big techs. A iniciativa, além de pragmática e estratégica, evidencia a assimetria de poder na negociação. Ao estabelecer esse diálogo, o governo busca reduzir resistências para garantir que a regulação avance, mas tal atitude reforça a crítica de que o Brasil segue influenciado pela hegemonia econômica e política dessas plataformas. Esse movimento evidencia o dilema de avançar em uma regulação eficaz quando, na prática, o processo legislativo já nasce permeado pela influência dos próprios agentes que deveriam ser regulados.
Resta, portanto, a reflexão de que, apesar do interesse legítimo em apresentar projetos de regulação digital, continuamos a testemunhar iniciativas que, mesmo promissoras no papel, ficam reféns das negociações com os próprios regulados e paralisadas pela resistência política, tornando qualquer avanço um gesto simbólico. Ainda assim, a persistência permanece essencial, pois é justamente por meio dela que se abre espaço para transformações reais.