Uma recém-lançada nota técnica, assinada por pesquisadores e entidades de ensino de Filosofia, Geografia, História e Sociologia, revelou que a carga horária das disciplinas de Ciências Humanas foi drasticamente reduzida no ensino médio público do estado de São Paulo nos últimos seis anos. A redução se deu para todas as formas de oferta: ensino médio em tempo parcial (quedas de 35,1% e 23,8% para os períodos diurno e noturno, respectivamente), em tempo integral (quedas de 35,1% e 22,2% para as jornadas de 7 e 9 horas) e Educação de Jovens e Adultos (queda de 57,1%).
A vedação do acesso ao conhecimento humanístico na escola pública escandaliza, mas não é surpresa no estado que implementou em plena pandemia o malogrado Novo Ensino Médio, reforma curricular que empregou vocabulário pomposo (“inovação”, “modernização”, “flexibilização”, “liberdade”, “protagonismo”) para predicar a substituição da formação científica por conteúdos inúteis inventados por fundações e institutos patrocinados por bilionários.
Como vimos, a derrocada dessa reforma curricular empresarial, acalentada pelo governo Temer e pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação, veio a galope. A hiper fragmentação curricular promovida pelo NEM tornou inadministráveis as escolas e os próprios sistemas de ensino (a certa altura, havia um menu com 276 disciplinas diferentes na rede paulista). Além disso, rebaixou tão escancaradamente a formação escolar, que as bandeiras individualistas da reforma, em vez de engajamento, geraram repulsa nos/as estudantes. No frigir dos ovos, a reforma tanto subestimou a inteligência dos atores escolares que ruiu em menos de três anos.
Primeiro a implementar a reforma, o estado mais rico do país anteviu a débâcle: “ajustou” a reforma de Temer já no ano letivo de 2024; antes, portanto, da “reforma da reforma” do ensino médio oficializada na Lei n. 14.945/2024. E em outubro de 2024, mais uma vez, antecipou-se às novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM, Resolução CNE/CEB n. 02/2024), que seriam homologadas pelo MEC só no mês seguinte, e reformou o currículo do ensino médio estadual para 2025 antes de a norma nacional sair.
Esse novo atropelo sinaliza algumas coisas sobre os efeitos práticos da “reforma da reforma” e sobre a forma como os estados poderão se comportar frente a ela. Em primeiro lugar, o governo paulista parece encarar a regulamentação da Lei n. 14.945/2024 pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) – de cumprimento obrigatório pelos estados – como um mero detalhe.
Em segundo, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) parece convencida de que o atual currículo do ensino médio paulista, comprimido por seis alterações nos últimos seis anos, está plenamente de acordo com a nova lei do ensino médio e as DCNEM. Depreende-se daí que o governo paulista não vê muita diferença entre a “reforma da reforma” do governo Lula e o fatídico NEM do governo Temer.
Evidenciando que o governo Tarcísio não está muito disposto a seguir o que determina a nova reforma, a Nota Técnica dos especialistas das Ciências Humanas trouxe outras duas informações preocupantes: 1) entre 2024 e 2025, a carga horária das Ciências Humanas foi reduzida de novo na rede paulista, contrariando a expectativa de recomposição da Formação Geral Básica (FGB) do ensino médio estabelecida na Lei n. 14.945/2024; e 2) o governo paulista manterá a política de oferta sistemática de aulas a distância como estratégia para “ampliar” a carga horária do ensino médio noturno, contrariando a nova lei, que estabelece a “excepcionalidade” dessa oferta nas redes de ensino.
Indagada a respeito por esta CartaCapital, a Seduc-SP objetou que “não é correta a comparação” da carga horária da FGB entre 2020 e anos posteriores, mas não justificou o porquê. Já sobre a composição da carga horária total das disciplinas de Ciências Humanas para 2025, o governo assumiu que não está cumprindo a Lei n. 14.945/2024 e as novas DCNEM. Alegou que teria, sim, havido aumento na carga horária das Ciências Humanas; só que, para percebermos isso, deveríamos somar a carga horária da FGB à dos itinerários formativos.
Ora, a nova lei do ensino médio estabelece justamente o aumento da carga horária da FGB de um máximo de 1.800 horas (como era no NEM da Lei n. 13.415/2017) para um mínimo de 2.400 horas (como está na Lei n. 14.945/2024). Os itinerários formativos (que perfazem as demais 600 horas) obviamente não contam. Isso significa que não deveria haver dúvida de que a “reforma da reforma” estabelece a recomposição da carga horária das disciplinas básicas surrupiada pela reforma de Temer e das fundações/institutos empresariais. Será?
Salada de conceitos
A lei da “reforma da reforma” deu a seguinte redação ao Artigo 35-C da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: “A formação geral básica, com carga horária mínima total de 2.400 (duas mil e quatrocentas) horas, ocorrerá mediante articulação da Base Nacional Comum Curricular [BNCC] e da parte diversificada”, seguido pela descrição (Art. 35-D) do que deverá conter essa BNCC: conteúdos de Artes, Biologia, Educação Física, Filosofia, Física, Geografia, História, Língua Portuguesa e suas literaturas, Língua Inglesa, Matemática, Química e Sociologia – as disciplinas que compõem as quatro áreas do conhecimento contempladas no currículo oficial (à exceção da Língua Espanhola, de oferta opcional). O parágrafo 1º do Art. 35-D, por fim, enfatiza que a BNCC “deverá ser cumprida integralmente ao longo da FGB”.
A BNCC do ensino médio, política curricular em vigor desde 2018 no país, foi elaborada após a promulgação da Lei n. 13.415/2017. Por conta disso, as tais 1.800 horas da FGB acabaram sendo identificadas como uma proporção mágica de 60% de “base comum” (a BNCC) que deveria compor a carga horária mínima total de 3.000 horas do ensino médio brasileiro. A essas 1.800 horas seriam somadas outras 1.200 (os 40% restantes), destinadas aos chamados “itinerários formativos”, que é a forma como o NEM interpretou a ideia de “parte diversificada” presente desde a primeira redação do Artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei n. 9.394/1996).
Embora essa proporção de 60:40 tenha ficado um tanto cristalizada nos debates sobre a BNCC (muito por conta do lobby de coalizões empresariais como o Movimento pela Base, que sempre defenderam o estreitamento da formação geral na escola pública), ela não consta de nenhum documento oficial do MEC ou do CNE. Foi o NEM que, ao restringir a carga horária da FGB a minguadas 1.800 horas, decretou de forma oficiosa o limite de 60% para a base comum. Lembremos que a BNCC do ensino médio foi elaborada à semelhança do NEM, não o contrário.
Ocorre que a Lei n. 14.945/2024 elevou a carga horária da FGB para 2.400 horas, mantendo o mesmo total de 3.000 horas letivas do NEM; ou seja, alterou as proporções entre FGB (base comum) e itinerários formativos (parte diversificada). Ao mesmo tempo, estabeleceu que a BNCC “deverá ser cumprida integralmente ao longo da FGB” e, de forma contraditória, que a FGB articulará BNCC e parte diversificada. Logo, ao mesmo tempo em que a manteve a estrutura FGB + itinerários formativos do NEM do governo Temer, a reforma da reforma do governo Lula trouxe para dentro da FGB a “parte diversificada” que o NEM interpretara como “itinerário formativo”.
A demanda principal do movimento #RevogaNEM sempre foi a recomposição da formação geral e comum a todo/a estudante do ensino médio brasileiro, ideia desde sempre rejeitada pelos fiadores bilionários da reforma de Temer, agora parceiros do MEC de Camilo Santana.
A fim de emitir sinais positivos ao imenso campo educacional que exigia a revogação do NEM, e, simultaneamente, de contentar fundações e institutos empresariais melindrados pela derrota no debate público, o MEC misturou num mesmo tacho “base comum”, “formação geral básica”, “parte diversificada” e “itinerário formativo”, alargando as possibilidades de interpretação do alcance da nova reforma conforme o capricho das redes estaduais.
Saliente-se que não foi o Congresso Nacional o responsável por essa salada. A proposta de que a garantia da FGB deveria ocorrer “mediante articulação entre a base nacional comum e a parte diversificada” foi feita pelo próprio MEC, na primeira versão do PL n. 5.230/2023 que deu origem à “reforma da reforma”.
É evidente que uma formulação alternativa (e muito mais simples) seria possível. O PL n. 2.601/2023 que propunha a revogação sumária do NEM, por exemplo, também reconhecia a necessidade de o currículo do ensino médio brasileiro ser composto por uma base comum e uma parte diversificada (como reza a LDB), mas definia a FGB – de forma muito precisa – como o conjunto das disciplinas que foram aviltadas pelo NEM. Definir as coisas com precisão não significa defender qualquer tipo de compartimentalização curricular, mas tão somente a garantia do acesso ao conhecimento na última etapa da educação básica para todos/as os/as estudantes.
A principal consequência da imprecisão é que as redes estaduais que, sob o NEM, vinham substituindo a formação científica no ensino médio por itinerários formativos estapafúrdios, agora poderão se sentir autorizadas a incorporá-los na FGB, sob a justificativa de estarem trabalhando a “parte diversificada” do currículo. É o que já vem ocorrendo em redes estaduais como a paulista.
O custo político da imprecisão
A redução da carga horária de Ciências Humanas no ensino médio paulista contrasta com o que vemos em outros estados. Em Sergipe, a carga horária total das disciplinas de História, Geografia, Sociologia e Filosofia para 2025 (600 horas totais) será 28,6% maior do que em São Paulo. No Rio de Janeiro, após forte pressão da categoria docente e de entidades estudantis, que reivindicaram a garantia de ao menos duas aulas de todas as disciplinas da FGB nos três anos do ensino médio, a matriz curricular da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc-RJ) ficou com uma carga horária de Ciências Humanas 42,8% maior que a da rede paulista em 2025.
Esse tipo de quadro comparativo, que poderia incluir outras redes estaduais e outras áreas do conhecimento, mostra desde já o tamanho da desigualdade de acesso ao conhecimento a que a imprecisão na definição de “Formação Geral Básica” feita pela Lei n. 14.945/2024 poderá levar.
No lugar das aulas de Ciências Humanas, a Seduc-SP aumentou em 50% a carga horária de Língua Portuguesa (com a inclusão do componente curricular denominado “Redação e Leitura”) e incluiu mais 133,3 horas de “Matemática Financeira” – o equivalente à carga horária total de Geografia, ou de Filosofia e Sociologia somadas – às 400 horas já existentes de Matemática.
Até o mundo mineral sabe que as disciplinas de Ciências Humanas e Naturais, cada uma à sua maneira, também propiciam aprendizagens relacionadas à escrita, à leitura, à álgebra, à geometria etc. A decisão de entupir os/as estudantes das escolas estaduais com aulas de Português e Matemática decorre do manjadíssimo intento do governo paulista de ensinar nas escolas somente o que interessa nas avaliações em larga escala como o Saeb, ainda que isso signifique oferecer um ensino médio empobrecido de disciplinas científicas.
Num país com tantos secretários estaduais de educação mentecaptos e que projetam a sua própria falta de qualificação ofendendo profissionais da educação, definir de forma deliberadamente imprecisa o que compreende a formação geral e básica a que todo/a estudante do ensino médio deveria ter acesso na escola pública abre flancos para que os absurdos do ensino médio nem-nem de Temer e companhia se repitam.
Neste novo momento, em que o governo Lula tenta reaver o protagonismo coordenativo das políticas públicas de educação perdido nos anos anteriores, o custo político de um novo fracasso da política de ensino médio não recairá somente sobre governadores e seus parceiros dos institutos e fundações empresariais.