No dia 8 de março, dia internacional de luta da mulher trabalhadora, a ex-candidata a vice-presidente pelo Partido Comunista do BRasil (PCdoB) em 2018, Manuela d’Ávilla, publicou um texto no portal Esquerda Online no qual tenta fazer uma análise do papel da mulher na luta política atual.
A matéria dá a entender que o grande problema da sociedade atual é o homem, que, por conta de uma “ideologia machista” inata, seria um inimigo das mulheres. Enquanto isso, a mulher seria a antagonista natural da extrema direita.
Além disso, Manuela d’Ávilla tenta dar com seu texto uma sobrevida ao identitarismo, isso depois do genocídio mais documentado da história da humanidade, na Palestina, com completo silêncio dos identitários, mesmo se tratando do extermínio de uma população que não é considerada branca e, sobretudo, após a maioria das vítimas dos israelenses serem mulheres. O silêncio sobre a questão da mulher palestina, principal questão para as mulheres na atualidade, também está presente no texto de Manuela d’Ávilla.
Vejamos alguns pontos da matéria:
“Desde 2014, nosso país viu a ascensão da extrema direita – antes tida como caricata e isolada nas pequenas rodas privadas do pensamento comum e reacionário – assumindo um protagonismo político capaz de se apresentar como a “única saída”, e de urgência, sobre a crise política e econômica que atravessamos no mundo. Figuras como Jair Bolsonaro saem, assim, do círculo do folclore do baixo clero do Congresso Nacional e assumem um lugar messiânico para a maioria da classe média e da elite brasileira.”.
Aqui vemos um argumento típico da direita identitária. A ideia de que o “senso comum” é fascista. Logo, chegamos à conclusão de que toda a população é fascista por algumas crenças e opiniões conservadoras, o que só serve para jogar mais pessoas no colo da extrema direita.
O texto continua:
“Do outro lado, vemos o maior revés do campo popular e democrático desde o fim da ditadura, em 1985. Da eleição de 2014 até o golpe que resultou no impeachment da presidenta Dilma, era como se estivéssemos imersos em uma “grande noite” – parafraseando Frantz Fanon – que autorizava uma crescente onda fascistizante reforçada pela misoginia, pelo racismo e pelo ódio contra o povo. Mesmo quem se contrapunha a isso não conseguia enxergar uma saída. Claro que essas questões já estavam profundamente enraizadas na estrutura da nossa sociedade e foram abertas ali como uma caixa de pandora do fascismo. A percepção de muitos era de que estávamos derrotados e condenados a sermos governados por uma onda de extremismo que varria o mundo, sem que pudéssemos fazer nada.
Nesse contexto, os movimentos feministas assumem um papel central – o ano era 2018, e milhares de mulheres tomaram as ruas de centenas de municípios brasileiros. Suas palavras de ordem eram claras: articulação política ampla. Através de encontros produzidos pela internet, buscavam construir um cordão sanitário de proteção da democracia: de um lado, Bolsonaro; de outro, todas as pessoas que se posicionassem contra suas ideias autoritárias. O movimento, popularmente conhecido como #EleNão, foi a maior mobilização social da última década e simbolizou mais do que uma resistência eleitoral – representou um marco histórico na luta contra a extrema direita no Brasil. Sob a perspectiva de Achille Mbembe em torno da ideia de Fanon, poderíamos dizer que essa mobilização foi um gesto concreto de busca pela saída da “grande noite” que se abateu sobre nós depois do período eleitoral de 2014 e que paralisou parte da esquerda. As mulheres, assim, encontravam um caminho possível e um espaço para construir a resistência.”
Esse ponto é importante, pois d’Ávila continua a endossar a ideia de que as manifestações do “Ele Não”, foram uma política da esquerda e sobretudo das mulheres para derrotar Bolsonaro. Em primeiro lugar, Bolsonaro venceu as eleições de 2018 após essa palavra de ordem ser lançada. E, logo após as eleições, as pessoas que antes haviam gritado “Ele não”, não quiseram se mobilizar pelo Fora Bolsonaro, incluindo, aí, a própria Manuela d’Ávilla.
Isso porque o “Ele Não” não era contra Bolsonaro, mas sim, uma política da terceira via, que tentava emplacar a ideia de que “não é porque você é contra o PT que você tem que votar no Bolsonaro. Há outros candidatos”. Se tratava, portanto, de uma mobilização impulsionada pela burguesia, inclusive pela burguesia imperialista, que tentava tirar Bolsonaro e o PT de Fernando Haddad do Palácio do Planalto e, em seu lugar, eleger o homem deste setor, Geraldo Alckmin, do PSDB, partido que não tem mais voto.
Tanto é assim que a campanha durou somente no período do primeiro turno, impulsionada pela imprensa da burguesia na época. Assim que Haddad e Bolsonaro foram para o segundo turno, a campanha acabou e o “Ele Não” se transformou em “Ele sim”, com quatro anos do governo de Bolsonaro no Brasil.
Ainda assim, apesar de ter havido manifestações pelo “Ele Não”, nem de longe elas foram as maiores da última década, sendo menores, por exemplo, que as manifestações contra o golpe de 2016, menores que o Fora Bolsonaro, que as mobilizações pela liberdade de Lula e muitas outras. Talvez Manuela d’Ávilla pense que o “Ele Não” foi grande por ter sido o único movimento na última década que ela participou efetivamente, mas não é a realidade.
“Às vésperas do processo eleitoral de 2018, a força política do #EleNão pode ter sido decisiva para que a chapa que eu compunha como candidata à vice-presidência de Fernando Haddad chegasse ao segundo turno. Naquele mesmo ano, inaugurou-se um ciclo de pesquisas que evidenciou a diferença de comportamento eleitoral entre mulheres e homens. Em julho, 22% dos homens declaravam espontaneamente votar em Bolsonaro, enquanto apenas 7% das mulheres faziam o mesmo. Em outubro, outro levantamento apontava que, entre eleitores do sexo masculino, Bolsonaro tinha 37% das intenções de voto, enquanto entre as mulheres o número era aproximadamente a metade: 21%, o que o deixava em empate técnico com Haddad, que marcava 22%. Essa diferença se consolidou em 2022, quando Lula venceu com 50,9% dos votos válidos, em grande parte devido ao voto feminino. Estima-se que 58% das mulheres tenham escolhido Lula, enquanto 52% dos homens optaram por Bolsonaro. Quando analisadas as intenções de voto das pessoas pardas e negras, a vantagem de Lula foi ainda maior: 57% a 35%. Esse protagonismo das mulheres – especialmente das mulheres negras – na luta contra a extrema direita não é um detalhe, mas uma evidência de que a resistência feminina, organizada a partir de suas próprias experiências e urgências, é uma força motriz de transformação. O #EleNão, como expressão dessa resistência, não só enfrentou as trevas autoritárias que ameaçavam engolir a democracia brasileira, como também acendeu uma luz capaz de nos guiar para fora da “grande noite”, em direção a um futuro mais justo, plural e democrático.”.
Aqui mais uma imprecisão. Manuela d’Ávilla só foi ao segundo turno por conta da transferência de votos de Lula ao candidato do PT, Fernando Haddad. Não fosse isso, Bolsonaro provavelmente teria sido eleito no primeiro turno. Não tem nada a ver com as manifestações do “Ele Não”.
Após as colocações sobre as manifestações que a burguesia promoveu para capturar os eleitores para Alckmin, Manuela passa a atacar toda a população masculina, tentando provar por meio das estatísticas que os homens votam mais na extrema direita que as mulheres. No entanto, para além das estatísticas de voto no Brasil, a hipótese das mulheres contra o fascismo e dos homens fascistas cai por terra ao observarmos a realidade: a primeira-ministra da Itália, Georgia Meloni, é fascista; a principal figura de extrema direita na Alemanha é Alice Weidel, da AfD; aqui no Brasil muitas mulheres se destacaram no governo Bolsonaro, como Damares, Regina Duarte e a própria Michelle Bolsonaro.
Além disso, naquilo que a esquerda chama de “democracia”, mas que nada mais é do que uma extrema direita disfarçada, também há muitos exemplos de mulheres que, dentre outras coisas, foram importantes para o genocídio na Palestina e a guerra da Ucrânia, como Ursula von der Leyen, Kaja Kallas, Kamala Harris e Nancy Pelosi.
O texto segue:
“É possível afirmar, portanto, que existe uma fissura entre escolhas políticas de mulheres e homens no Brasil. (…) Essas divergências baseadas em gênero exigem de nós capacidade crítica e respostas mais complexas do que o dedo apontado para as mulheres e o chamado identitarismo. Afinal, é possível que só derrotemos a extrema direita se compreendermos por que as mulheres não aderem às suas ideias.”
Fica evidente, portanto, que o texto de Manuela d’Ávilla é uma tentativa de salvar o identitarismo e um apelo à política de frente ampla contra a extrema direita, políticas alinhadas ao imperialismo e que não lutam de fato contra a extrema direita, mas sim, limitam a atuação da esquerda e preparam o terreno para que a direita tradicional governe.
Manuela, ao defender que as críticas ao identitarismo são críticas ao movimento de luta das mulheres, demonstra desconhecer a história desses movimentos de luta.
A luta das mulheres é muita antiga e, a história da luta das mulheres operárias, remonta ao início da industrialização. Já o 8 de março é o dia internacional de luta das mulheres por ter sido o dia em que se iniciaram greves de mulheres da indústria têxtil em Nova Iorque, sendo brutalmente reprimidas durante as semanas nas quais a greve se estendeu.
Já o identitarismo é uma moda muito mais nova, tendo sido impulsionada pelo imperialismo na década passada. Ao contrário da luta das mulheres trabalhadoras, que busca superar a opressão contra as mulheres e sanar fardos materiais que as mulheres sofrem, como a falta de creches e os salários mais baixos, além da luta por direitos como o aborto e o divórcio, o identitarismo não tem bem definido pelo que luta.
A princípio, o identitarismo lutaria por algo vago, difícil de se definir, que seria a identidade das mulheres. Mas o que temos visto é que, na realidade, o que o identitarismo faz é criar a ilusão de que o sistema capitalista atual tem as soluções para o problema da mulher e, principalmente, que essa solução passa pela repressão à população mais pobre.
Vemos, portanto, que o problema da mulher seria resolvido pelo identitarismo com cadeia. Cadeia para os agressores, os homens que não pagam pensam, mais penas para os estupradores, penas especiais em caso da vítima ser mulher, censura para os que não concordam com os identitários, como podemos ver no caso da “transfobia”, no qual todos que criticam a chamada agenda trans são perseguidos, incluindo as mulheres.
Os identitários, assim como uma parte dos movimentos que se reivindicam como feministas, acreditam no “patriarcado”, uma entidade que ninguém nunca viu e que representaria o poder dos homens. O movimento feminino operário, por sua vez, vê na revolução proletária a resolução dos problemas das mulheres.
A luta internacional dos trabalhadores sempre levou em consideração a situação da mulher e sempre a colocou na posição de mais importante além da própria luta dos trabalhadores de conjunto, já que, além de as mulheres serem metade da classe operária, são um setor que possui problemas a parte para resolver.
No entanto, não há um antagonismo entre a mulher e o homem como pregam os movimentos feministas e identitários. A luta da mulher é importante para o operariado se libertar e, sem a libertação do operariado, a mulher também não se liberta. No entanto, sem a luta pela libertação das mulheres, também não há vitória dos trabalhadores.
A luta dos trabalhadores e, portanto, a luta das mulheres, é uma luta contra a burguesia, principalmente a burguesia imperialista, que é quem domina o mundo e submete as mulheres à opressão. “O homem”, isolado, pode em alguns casos agir contra uma mulher, mas a maioria dos homens são explorados pela mesma burguesia que mantém a mulher na condição em que está hoje.
Manuela d’Ávilla volta, no trecho a seguir, a atacar os homens no geral. Primeiro, ela comenta sobre a situação cada vez mais difícil para os trabalhadores no Brasil para, em seguida, dizer que essa situação cria homens ressentidos com as conquistas das mulheres:
“Diante de uma situação de crise, desemprego e subemprego, de trabalhos cada vez menos capazes de garantir dignidade, da incapacidade crescente de sair da casa dos pais, lideranças forjadas a partir do ressentimento de gênero ganham espaço. Trata-se de líderes que atribuem o fracasso masculino aos êxitos femininos, impossibilitados de ver a emancipação das mulheres como algo que beneficia a sociedade como um todo.”
Mas quais êxitos femininos? O que as mulheres conquistaram na última década? A declaração não faz sentido algum. Ela comenta sobre a crise e a situação cada vez mais complicada dos trabalhadores para, na sequência, dizer que esse mesmo período levou a avanços para as mulheres. É como se a crise e a política pós-golpe de Estado tivessem trazido benefícios para as mulheres que os homens não poderiam suportar.
O que vemos é justamente o contrário, a situação da mulher só piorou no último período, vítima do desemprego, de condições cada vez mais precárias e uma situação de pobreza extrema. Os “avanços” a que Manuela se refere só podem ser os da política identitária, que vê na censura e na repressão aos mais pobres a solução para o problema das mulheres.
Manuela também demonstra não ter ideia do que é o fascismo. Ao invés de buscar o exemplo histórico e tentar fazer uma síntese do que seria o fascismo, ela procura as repostas no identitarismo, tentando associar a todas as pessoas que fogem da cultura woke como sendo fascistas ou possivelmente fascistas.
Por fim, o texto de Manuela culpa as redes sociais pelo fascismo e pela opressão das mulheres:
“A própria dinâmica das redes sociais contribui para que homens e mulheres tenham cada vez menos coisas em comum entre si e para que homens radicalizem na defesa de suas ideias.”
Trata-se de mais uma tentativa de impor a censura no Brasil. Os identitários criaram a ideia de que a liberdade nas redes sociais é o que alimenta o fascismo e, portanto, deveríamos lutar para que a liberdade de expressão fosse restrita e impedisse os fascistas de falar.
Acontece que a censura nas redes sociais no atual momento busca impedir que situações como a do genocídio em Gaza sejam expostas para o mundo. Quem pede censura, contribui com o fascismo israelense no massacre da população palestina, sobretudo no massacre de mulheres e crianças. Mas, como já vimos, as mulheres palestinas não parecem ser tão importantes para figurar dentre as preocupações de Manuela d’Ávilla.