O Elefante está no salão oval da Casa Branca
por Maria Luiza Falcão Silva
Dois homens estão na vanguarda de uma guerra comercial que ameaça romper os laços entre as duas maiores economias do mundo. Se a guerra comercial se intensificar as consequências para a economia global serão devastadoras. Algumas questões se colocam: quem vai ceder primeiro? A guerra comercial pode virar uma guerra financeira?
De um lado está o presidente Donald Trump que priorizou a redução do déficit comercial (exportações menos importações de bens e serviços) dos Estados Unidos que aumentou significativamente nas últimas décadas. Ele e seus assessores argumentam que renegociar acordos comerciais, promover políticas de “comprar produtos americanos” e confrontar a China sobre o que consideram distorções econômicas equilibrarão a balança comercial do país com o resto do mundo. Como resultado argumentam que haverá uma reindustrialização da economia americana, criação empregos domésticos e fortalecimento da segurança nacional. Seria um retorno aos anos áureos da década de 1950.
Sem dúvidas o resultado do comércio exterior da China, divulgado em janeiro desse ano, um superávit recorde de cerca de um trilhão de dólares, deixou Trump enfurecido. A China havia exportado quase US$ 1 trilhão a mais em produtos do que importara em 2024. Mercadorias e serviços chineses da ordem de US$ 3,58 trilhões invadiram países industrializados e em desenvolvimento, em contraste com importações avaliadas em US$ 2,59 trilhões, gerando um superávit de US$ 990 bilhões. Um recorde mundial, mesmo para o século passado. A efervescência das exportações chinesas incomodou países desenvolvidos e em desenvolvimento por temerem a concorrência com a China que produz a custos menores dada a abundância de mão de obra barata e, em decorrência, custos de produção mais baixos. Não é apenas a mão de obra barata que dá competitividade à China. Cadeias de produção cada vez mais sofisticadas, automatizadas e de alta tecnologia produzem desde bens domésticos e calçados até eletrônicos, matérias-primas para construção, eletrodomésticos e painéis solares. Por isso a China tem sido chamada de chão de fábrica do mundo. Essa produção satisfaz a demanda dos consumidores americanos e globais por bens acessíveis, mas agravam o enorme déficit comercial dos Estados Unidos e alimenta um sentimento entre muitos americanos e de forma redobrada em Trump, de que a globalização roubou a manufatura e os empregos dos EUA.
Nesse sentido Trump lançou, em 02 de abril, um plano disruptivo para transformar o sistema de comércio global “prejudicial aos Estados Unidos” sob o seu olhar e de dois ou três assessores que na verdade o ‘desorientam’. Tarifas sobre importações americanas foram impostas a mais de uma centena de países. Países asiáticos foram os mais atingidos. Após várias promessas de retaliação Trump recuou horas depois do tarifaço entrar em vigor, na quarta-feira (9), dando uma trégua de 90 dias para aplicação das novas tarifas. Na sequência, a Casa Branca esclareceu que as tarifas voltaram para 10% universais, com exceção da China, sob cujos produtos incidiria uma tarifa de 104%. A pausa tarifária é “frágil”, alertou o presidente francês Emmanuel Macron na sexta-feira (11), porque tarifas de 25% sobre aço, alumínio e automóveis e tarifas de 10% sobre todos os outros produtos ainda estão em vigor, representando € 52 bilhões em impostos para a União Europeia.
Ao longo de uma semana, as tarifas de Trump sobre importações chinesas saltaram de 54% para 104% e agora 125% – números que se somam às taxas existentes impostas antes do segundo mandato do presidente. A China pagou na mesma moeda elevando as tarifas retaliatórias sobre as importações dos EUA de 84% para 125%, segundo comunicado de sexta-feira (11). Na mesma sexta-feira (11) um aviso da Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA alerta que eletrônicos importados para os Estados Unidos estão isentos das tarifas recíprocas do presidente Donald Trump. Parece brincadeira!!!
Na véspera do recuo do dia 08/04 (terça-feira), o Presidente dos Estados Unidos deu uma declaração, em jantar do Comitê Republicano do Congresso Nacional, provocando risos de aprovação dos seus correligionários. O discurso ultrajante foi transmitido pela a mídia global, zombando dos países em geral: “Esses países estão nos ligando, estão me bajulando, estão morrendo de vontade de fazer um acordo. Por favor, senhor, vamos fazer um acordo, farei qualquer coisa, senhor. Todos na fila para beijar minha bunda”. Com essas palavras xulas o presidente norte-americano Donald Trump zombou dos líderes mundiais que, segundo ele, estavam em pânico e desesperadamente buscando algum tipo de negociação sobre as tarifas punitivas contra seus países cujo único erro cometido era exportar mais para os EUA do que importam. Não escaparam das tarifas nem mesmo aliados históricos como México, Canadá e União Europeia.
Do outro lado está Xi Jinping, o principal líder da China, que se recusa a ceder. Não há vencedores. Xi acusa Trump de “bullying unilateral”. Decreta 125% sobre importações de produtos americanos pela China. Sem dúvidas, os prejuízos para o gigante asiático nessa guerra comercial são inestimáveis. Observa-se que o país vem se movimentando na busca por novos parceiros até pouco tempo inadmissíveis como Japão e Coreia do Sul e inúmeros outros, em todos os continentes, inclusive a União Europeia que também não está nada satisfeita com Trump.
Mas o ponto que quero fazer aqui é no sentido de levantar algumas hipóteses sobre o que move o incontrolável ‘dono do mundo’, o Sr. Trump e o que o faz, em tão poucos dias, uma única semana, dar cavalos de pau em suas decisões comprometendo a segurança do seu país e a do mundo inteiro.
Quem vem acompanhando os efeitos do tarifaço do presidente estadunidense percebeu uma mudança de discurso de quarta para quinta-feira (10 de abril). O Sr. Trump adotou um tom mais suave em relação à China, dizendo que:
O Sr. Xi “é meu amigo há muito tempo”. “Veremos o que acontece com a China”. “Adoraríamos conseguir fechar um acordo”.
Algo mudou? Difícil avaliar tanta loucura. Mas possível fazer algumas conjecturas a partir da observação do comportamento dos mercados financeiros dos Estados Unidos.
Os alicerces do sistema financeiro tremeram na sexta-feira (11), com os rendimentos dos títulos do governo norte-americano subindo acentuadamente e os preços caindo. A implementação caótica de tarifas parece estar abalando a fé nos títulos emitidos pelo Tesouro dos EUA.
Os títulos da dívida pública dos Estados Unidos são respaldados pela credibilidade do governo. O mercado de títulos do Tesouro estadunidense é, há muito tempo, considerado um dos mais seguros e estáveis do mundo. Mas o seu comportamento errático, durante toda a semana, levantou temores de que os investidores estejam se voltando contra os ativos dos EUA à medida que a guerra comercial do presidente Trump se intensifica.
Aumentos, em torno de 0,40 pontos percentuais que ocorreram, podem parecer pequenos, mas representam grandes movimentos no mercado de títulos do Tesouro norte-americano, levando os investidores a perceberem que as políticas tarifárias de Trump estão causando sérias turbulências. Isso também importa para os consumidores dos Estados Unidos. Se você tem uma hipoteca ou um financiamento de carro, por exemplo, a taxa de juros que você paga está relacionada ao rendimento dos títulos do Tesouro de 10 anos. Esses mesmos papéis são considerados um porto seguro para investidores em períodos de volatilidade no mercado de ações. Assim, o forte aumento nos rendimentos desta semana tornou esse mercado extraordinariamente perigoso.
O rendimento de um título se move na direção oposta ao seu preço. Assim, com os rendimentos subindo inesperadamente, investidores em todo o mundo que detêm trilhões de dólares em títulos do Tesouro americano estão vendo o valor de seus ativos cair repentinamente.
O aumento dos rendimentos dos títulos de 30 anos também foi histórico, assinalaram analistas. Estes títulos são considerados um refúgio, de forma particular para fundos de pensão e seguradoras que possuem passivos que se estendem ao futuro e, desse modo, precisam de ativos que correspondam a essa necessidade.
“Isso não é normal”, escreveu Ajay Rajadhyaksha, presidente global de pesquisa do Barclays, em um relatório na sexta-feira divulgado no New York Times. Buscando uma explicação, Rajadhyaksha apontou para a especulação de investidores asiáticos que estão vendendo em resposta às tarifas, bem como para a possível descontinuação de apostas altamente alavancadas no mercado de títulos do Tesouro. “Seja qual for o motivo, neste momento, os mercados de títulos estão em dificuldades”, disse ele.
O rendimento do título do Tesouro de 30 anos subiu 0,44 ponto percentual esta semana, sinalizou uma mudança acentuada na demanda pelo título de longo prazo.
Normalmente, o mercado de títulos do Tesouro americano, de quase US$ 30 trilhões, é grande demais para ser afetado significativamente por mudanças no apetite de compra, disseram analistas, destacando o quão severos têm sido os movimentos atuais no mercado.
Outro sinal preocupante na sexta-feira (11/04) foi a desvalorização do dólar americano, que despencou 0,8% em relação a uma cesta de moedas que representam seus principais parceiros comerciais. Todas as moedas do grupo dos 10 países se valorizaram em relação ao dólar, apontando ainda mais para um afastamento dos ativos americanos.
Um dólar mais fraco ao mesmo tempo em que títulos do governo e ações estão sendo vendidos é uma combinação rara, dado o papel do dólar como moeda de reserva e porto seguro do sistema financeiro global.
Tudo isso não passou desapercebido por Trump. Observou que o mercado de títulos parecia “enjoado” o que o levou, na quarta-feira, a suspender as tarifas para a maioria dos países. Tudo faz acreditar que tem um “elefante na sala” e tudo faz crer que seja o mercado de títulos do Tesouro dos Estados Unidos.
Autoridades do Federal Reserve (FED) reconhecem as oscilações recentes, mas ainda fingem que não estão vendo. Susan Collins, presidente do FED de Boston, afirmou que os mercados “continuam funcionando bem”. Não havia “preocupações gerais com a liquidez”, disse ela, mas acrescentou que o banco central estaria “absolutamente preparado” para intervir se necessário para estabilizar o mercado.
O FED está em uma posição complicada. O efeito inflacionário das tarifas justifica que o banco central mantenha as taxas de juros altas. Mas reduzir as taxas de juros seria mais favorável aos mercados financeiros e ao crescimento econômico, algo que o banco central tem resistido a fazer. As expectativas sobre a inflação em 12 meses dispararam, ressaltando o desafio do FED.
Enquanto isso, a implementação tarifária caótica desta semana, seguida de um adiamento parcial das tarifas globais, e a guerra comercial crescente entre os EUA e a China, deixaram os investidores globais inseguros quanto à confiança no mercado dos títulos do Tesouro, ou mesmo no dólar americano, como fontes de segurança e estabilidade.
Investidores estrangeiros estão entre os maiores detentores de títulos do Tesouro americano. O Japão é o maior, segundo dados oficiais, com mais de US$ 1 trilhão e o segundo maior é a China, que detém US$ 760 bilhões em títulos do Tesouro estadunidense, tendo já reduzido seus investimentos em mais de um quarto de trilhão de dólares desde 2021. Inúmeros países mantêm suas reservas internacionais nesses títulos. A Alemanha sentiu que a procura por títulos do Tesouro alemão vêm crescendo. Difícil pensar em termos de trilhões de dólares. Para se ter ideia da magnitude, segundo projeções do FMI divulgada em dezembro do ano passado, apenas 19 países no mundo atingiram a casa do trilhão.
O temor é que a China resolva se desfazer dos títulos do Tesouro Americano, afinal trata-se de uma guerra e as armas são muitas. Seria um caos. As cartas estão nas mãos de Xi. O Elefante está no salão oval da Casa Branca. A semana que inicia, em 14 de abril, promete grandes emoções.
Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA.
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