O ecossistema do ódio: como a misoginia digital fabrica a violência que mata mulheres

Há algo perverso e silenciosamente organizado no modo como o Brasil tem naturalizado a violência contra as mulheres. Não se trata apenas de casos isolados, tragédias pontuais ou episódios “chocantes” que interrompem a programação dos domingos. O que assistimos hoje é o desdobramento de um ecossistema de ódio que nasce nas redes, se dissemina como método político e finalmente se materializa na carne das mulheres — com sangue, com dor e, muitas vezes, com morte.

A prisão do “Calvo da Campari” — detido por violência doméstica e tentativa de estupro após anos disseminando misoginia para milhões de pessoas —, a execução brutal de duas servidoras no CEFET-RJ e o caso da mulher arrastada por mais de um quilômetro na Marginal Tietê, que teve as duas pernas amputadas e segue em estado grave, não são fatos isolados. São expressões de um mesmo sistema que transforma ódio digital em violência real.

O mercado do ódio que movimenta milhões

A cultura misógina que prospera nas redes produz engajamento, monetização e poder. Um mercado inteiro — financeiro, político e eleitoral — se alimenta desse fluxo. Influenciadores, páginas organizadas, anunciantes e políticos da extrema direita transformaram ataques às mulheres em estratégia: é lucrativo silenciá-las, ridicularizá-las e convertê-las em alvo.

São eles que naturalizam agressões, que sexualizam e humilham figuras públicas, que atacam e ameaçam deputadas e lideranças femininas, que convocam linchamentos virtuais e estimulam intimidações. A misoginia virou linguagem de autoridade — e modelo de comportamento.

Da violência nas redes ao feminicídio

O que acontece nas redes não fica nas redes. O mesmo discurso que rende curtidas é o que estimula ataques, perseguições e morte. A misoginia digital funciona como validação: cria pertencimento, legitima impulsos violentos, treina práticas. Homens testam limites online — e depois agem no mundo real.

Quando uma professora e uma servidora são executadas dentro de uma instituição pública, quando uma mulher é arrastada em plena Marginal Tietê, quando um influenciador conhecido por atacar mulheres é detido por violência doméstica e tentativa de estupro, a mensagem é clara: o ódio já se tornou uma prática, não apenas um discurso.

O Estado reage: pacto e responsabilidade

Nesse contexto, o Pacto Nacional pelo Enfrentamento ao Feminicídio é um avanço estrutural. Ele reconhece que a violência contra mulheres é questão de segurança, justiça, saúde, educação e assistência social. Exige prevenção, investigação rápida, proteção integral e articulação federativa.

Mas nenhum pacto terá força se o país continuar alimentando o mercado digital e político que lucra com a morte das mulheres.

A misoginia deve ser criminalizada

Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº 896/2023, que tipifica a misoginia como crime e fortalece o arcabouço jurídico destinado a enfrentar a discriminação e o discurso de ódio contra mulheres, reafirmando o compromisso do Estado com a proteção de sua dignidade. A aprovação da matéria é urgente: o discurso de ódio na internet tem se valido de interpretações distorcidas da liberdade de expressão e da ausência de tipificação específica para disseminar ataques e lucrar com a violência direcionada às mulheres. A própria autora do projeto, senadora Ana Paula Lobato (PSB-MA), precisou acionar a Polícia Federal e a Polícia do Senado após receber ameaças de morte decorrentes da aprovação do texto na CCJ — mais um episódio que evidencia, de forma incontestável, a necessidade de avançar com a criminalização da misoginia no ordenamento jurídico brasileiro.

Denúncia e escolha coletiva

Enquanto esse sistema seguir lucrando, o ódio continuará saindo das redes — e invadindo ruas, trabalhos, escolas e casas. A violência não é desvio: é projeto — uma economia que movimenta interesses e uma estratégia política que se alimenta da misoginia. A extrema direita fez dessa lógica o seu motor: transformou dor em moeda, misoginia em método e violência em plataforma.

O Brasil precisa decidir se continuará permitindo que algoritmos, influenciadores e campanhas fabriquem agressores — ou se terá coragem de desmontar o mercado que converte ódio em voto, violência em engajamento e mulheres em alvo.

Nenhuma violência é inevitável. Nenhum feminicídio é acidente. É sistema — e sistema se enfrenta.

Gleide Andrade é secretária nacional de Finanças e Planejamento do Partido dos Trabalhadores

Artigo originalmente publicado no site do Brasil 247

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