Antes de receber a chave do Pentágono, Pete Hegseth jurou ao Senado que trocaria o uísque pela água mineral enquanto vestisse o uniforme civil de Secretário de Defesa. A cada nova ida ao Congresso, repetia a frase: “Comprometo-me com a sobriedade completa durante o mandato.” Guardemos esse detalhe.

Em maio de 2025, em Singapura, ele subiu ao palco do Diálogo Shangri-La para proclamar que “America is proud to be back in the Indo-Pacific — and we’re here to stay”.¹ Nas entrelinhas soava um velho acorde: Washington sente falta de quando sua Sétima Frota ditava o ritmo dos mares. Hegseth descreveu-se disposto a “voltar, voltar e voltar” à região, como um visitante que avisa de antemão que não pretende ir embora cedo.

Logo na abertura, ele pediu licença para confessar: “Por uma geração, ignoramos esta região, distraídos por guerras sem fim e mudanças de regime.” A confissão caberia num livro de autoajuda, não fosse o detalhe de que esse mesmo período coincidiu com o salto econômico mais consistente da Ásia em cem anos. Enquanto o Indo-Pacífico prosperava sem a tutela diária do Tio Sam, os lugares onde o império de fato aterrissou — Oriente Médio, Norte da África, Ásia Central — ganharam crateras e balanços sangrando em vermelho.

Mas o secretário tinha pressa em retomar o controle da narrativa. Citou o presidente Trump, seu “líder da paz”, e ergueu a doutrina clássica: “achieve peace through strength”.¹ Explicou que seu trabalho é “criar espaço de decisão” para o comandante-em-chefe, “restaurar o ethos guerreiro” e “reconstruir nosso exército”. Lembrou ainda que o orçamento de defesa ultrapassará um trilhão de dólares, espremendo submarinos, bombardeiros furtivos e “hipersônicos” na mesma gaveta. Paz, aqui, é sinônimo de gastar antes que alguém pense em reagir.

Quando chegou a hora de nomear o inimigo, Hegseth foi direto: “China seeks to become a hegemonic power in Asia.”¹ Acrescentou que Pequim “espera dominar a região” e que “qualquer tentativa de conquistar Taiwan por força teria consequências devastadoras”. Em seguida, elevou o tom: “The threat China poses is real. And it could be imminent.”¹ Não apresentou prazo, mas ofereceu uma data-guia: Xi Jinping teria ordenado que o Exército Popular estivesse pronto para invadir Taiwan até 2027 — prova definitiva de intenção, ao menos para quem confunde exercício de capacidade com contagem regressiva.

Para reforçar o aviso, o secretário girou o laser para o Mar do Sul da China. Denunciou canhões d’água, abalroamentos, “ilegalidades” variadas e prometeu que “qualquer tentativa unilateral de mudar o status quo” seria “inaceitável”. A plateia filipina assentiu; a vietnamita levantou sobrancelhas; os demais anotaram em silêncio. Em Washington, o gesto rendeu manchetes que dispensam notas de rodapé.

Satisfeito com o diagnóstico, Hegseth apresentou a fatura aos aliados: “We ask — and indeed, we insist — that our allies and partners do their part on defense.”¹ Tradução livre: reservem cinco por cento do PIB às armas se quiserem continuar no clube. O cajado, polido com verniz diplomático, pousou suave sobre orçamentos nacionais destinados a professores, hospitais ou ferrovias. Amizade de longo prazo, afinal, exige sacrifícios de curto prazo — desde que pagos em moeda local.

No mesmo parágrafo, alertou contra o “emaranhamento” econômico com Pequim. Cooperar comercialmente com a China, explicou, cria dependências perigosas; já encomendar caças e mísseis em catálogo americano garante liberdade de ação. O raciocínio dispensava ironia: o segredo para evitar influência externa seria assinar contratos bilionários com fornecedores de Washington. Ninguém riu em voz alta.

Para testar a lógica, basta inverter o tabuleiro. Imaginem Pequim enviando seu ministro da Defesa a Cidade do México e Ottawa para avisar que “a ameaça americana é iminente”, exigir cinco por cento do PIB em arsenais e prometer “lutar e vencer decisivamente” caso necessário. O Capitólio acionaria sirenes antes que o café esfriasse. No Indo-Pacífico, contudo, espera-se serenidade.

Hegseth prosseguiu listando iniciativas: baterias de mísseis em Luzon, testes do Mid-Range Capability na Austrália, acordos de produção de munição com a Índia, um consórcio de drones batizado de “Maritime Security Consortium”. Cada item pontuava a lógica de dissuasão por atrito — criar dilemas diários para Pequim, “mais variáveis, mais motivos para desistir”. Tudo pensado, claro, para que a guerra nunca comece.

O discurso também reservou espaço para louvar a “volta” dos aliados europeus, agora dispostos a investir pesado em defesa. Hegseth sugeriu que Tóquio, Seul e Manila sigam o exemplo de Berlim. A comparação rendeu um leve sorriso entre diplomatas acostumados a ouvir que a OTAN é peso-morto; agora surge como referência virtuosa. Vira-volta interessante.

Entre citação e citação, o secretário arriscou tese histórica: Lee Kuan Yew e Trump teriam a mesma visão pragmática de mundo, sustentada por “senso comum” e “preferência pelo comércio”. A plateia singapuriana — herdeira direta de Lee — pareceu medir silêncio em decibéis. Trump, afinal, bradou tarifas, cancelou acordos e enxergou déficit comercial como ofensa pessoal. Mas convenções servem justamente para discursos ousados.

Sobram, então, duas perguntas. Primeiro: que paz se constrói a partir de cronômetros, ogivas e orçamentos trilionários? Segundo: como se encaixa o voto de sobriedade no meio de tanto fervor bélico? Ninguém cobrará o resultado de exames toxicológicos, mas o pronunciamento soou, em vários trechos, como quem bebeu coragem líquida antes de subir ao palco.

Talvez seja apenas o efeito do poder — bebida destilada que, por si, deixa a língua solta e o juízo elástico. Seja como for, o Indo-Pacífico, que prosperou quando a bandeira americana flutuava ao longe, volta a receber visitas frequentes. Diretores de orçamento que se virem com as planilhas; generais que ajustem os radares; pescadores que rezem pelo tempo bom. Quem quiser paz, que prepare a carteira.

Discurso completo disponível aqui. Comentário inspirado em análise de Arnaud Bertrand.


¹ Citações extraídas de “Remarks by Secretary of Defense Pete Hegseth at the 2025 Shangri-La Dialogue in Singapore (As Delivered)”.

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Last Update: 31/05/2025