O Primeiro-Ministro da Malásia, Anwar Ibrahim, proferiu um discurso absolutamente antológico durante o BRICS Business Forum 2025, realizado no Rio de Janeiro em 5 de julho de 2025. Em sua intervenção, Ibrahim evocou nomes históricos da luta anticolonial e anti-imperialista do Sul Global, estabelecendo uma ponte temporal entre os pioneiros da descolonização e o momento atual de reconfiguração da ordem mundial.

Durante sua fala, o líder malaio lembrou figuras emblemáticas como Sukarno da Indonésia, Jawaharlal Nehru da Índia, Zhou Enlai da China e Kwame Nkrumah de Gana, todos arquitetos fundamentais dos movimentos de libertação nacional e da construção de uma alternativa ao domínio das potências ocidentais. Estes líderes, segundo Ibrahim, foram os precursores de uma visão que hoje encontra nova expressão no BRICS+.

Um discurso de ruptura e continuidade histórica

O discurso de Anwar Ibrahim no Rio de Janeiro representa um marco na articulação contemporânea do pensamento anticolonial. Ao invocar a Conferência de Bandung de 1955, o Movimento dos Não-Alinhados e o Grupo dos 77, o Primeiro-Ministro malaio traçou uma genealogia da resistência do Sul Global às estruturas de dominação estabelecidas pelas antigas metrópoles coloniais.

Ibrahim foi categórico ao afirmar que “não podemos continuar reclamando, mas não executando”, sinalizando uma mudança de paradigma na abordagem dos países emergentes. Sua mensagem central foi clara: o Sul Global não é mais um bloco passivo, mas uma força estratégica pronta para engajar o mundo em seus próprios termos, com sua própria voz e em pé de igualdade.

O líder malaio saudou especialmente o Presidente Lula por “desafiar os papéis roteirizados atribuídos aos líderes do Sul” e por avançar uma visão enraizada na dignidade e independência. Para Ibrahim, a era de esperar permissão de Washington ou Bruxelas chegou ao fim, marcando o início de uma nova fase nas relações internacionais.

A Malásia: potência emergente do Sudeste Asiático

A Malásia tem emergido como uma das principais potências do Sudeste Asiático, consolidando-se como um ator relevante tanto no cenário regional quanto global. Com uma população de 33,059 milhões de habitantes, o país registrou um Produto Interno Bruto de US$ 419,6 bilhões em 2024, resultando em um PIB per capita de US$ 12.541. Estes números refletem o dinamismo de uma economia que cresceu em média 6,5% ao ano desde a independência, estabelecendo um dos melhores registros econômicos da Ásia.

A economia malaia caracteriza-se por sua diversificação, abrangendo desde a tradicional produção de commodities até setores de alta tecnologia. O país destaca-se na produção de óleo de palma, borracha natural e estanho, mas também desenvolveu uma robusta indústria de semicondutores e tecnologia da informação. O setor de Tecnologia de Informação e Comunicação representa 13% do PIB nacional, demonstrando a transição bem-sucedida para uma economia baseada no conhecimento.

A posição geográfica estratégica da Malásia, controlando o Estreito de Malaca – uma das rotas marítimas mais importantes do mundo – confere ao país uma relevância geopolítica que transcende seu tamanho. Esta localização privilegiada tem sido fundamental para o desenvolvimento de Kuala Lumpur como centro financeiro regional e hub logístico para o comércio entre a Ásia Oriental e o Oceano Índico.

O papel central da Malásia na ASEAN

A Malásia ocupa posição de destaque na Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), assumindo a presidência rotativa do bloco em 2025. Esta liderança temporária coincide com um momento crucial para a organização, que busca fortalecer sua coesão interna e ampliar sua influência global em meio às crescentes tensões geopolíticas.

Como membro fundador da ASEAN, a Malásia tem sido um dos principais defensores do princípio da “centralidade” do bloco, que preconiza o engajamento equilibrado com todas as grandes potências sem alinhamento exclusivo com nenhuma delas. Esta abordagem pragmática tem permitido ao país manter relações produtivas tanto com os Estados Unidos quanto com a China, posicionando-se como mediador em questões regionais sensíveis.

A presidência malaia da ASEAN em 2025 ganha particular relevância no contexto do crescente interesse do bloco pelos BRICS. Além da própria Malásia, outros três países da ASEAN – Tailândia, Vietnã e Indonésia – manifestaram interesse em estreitar laços com o agrupamento, sinalizando uma possível reorientação geopolítica da região.

Relações estratégicas com a China

A China consolidou-se como o maior parceiro comercial da Malásia há 15 anos consecutivos, estabelecendo uma relação econômica de profunda interdependência. Esta parceria transcende o comércio bilateral, abrangendo investimentos em infraestrutura, cooperação tecnológica e intercâmbio cultural. A Malásia tem sido um dos principais beneficiários da Iniciativa do Cinturão e Rota chinesa, recebendo investimentos significativos em projetos de conectividade e desenvolvimento urbano.

A visita de Estado do Presidente Xi Jinping à Malásia em abril de 2025 simbolizou o aprofundamento desta parceria estratégica. Durante a visita, os dois países assinaram acordos de cooperação em áreas que vão desde energia renovável até inteligência artificial, reforçando a dimensão tecnológica da relação bilateral.

Apesar das disputas territoriais no Mar do Sul da China, a Malásia tem mantido uma postura pragmática, priorizando os benefícios econômicos da cooperação com Pequim. Esta abordagem reflete a estratégia malaia de “befriending all, supporting just causes” (fazer amizade com todos, apoiar causas justas), como mencionado por Anwar Ibrahim em seu discurso no Rio.

Parcerias com o Brasil: ponte entre continentes

As relações entre Malásia e Brasil têm se intensificado significativamente nos últimos anos, com o comércio bilateral atingindo US$ 3,027 bilhões em 2016, posicionando a Malásia como o quarto principal parceiro comercial do Brasil na Ásia. Esta parceria tem se concentrado principalmente no agronegócio, com o Brasil exportando produtos como soja, milho e carne, enquanto importa óleo de palma, óleos vegetais e pasta de cacau da Malásia.

A cooperação bilateral estendeu-se além do comércio, abrangendo áreas como tecnologia agrícola, energia renovável e cooperação técnica. Em agosto de 2024, os ministros da Agricultura dos dois países se reuniram para discutir o aprofundamento das relações técnicas e comerciais, sinalizando o potencial de expansão desta parceria.

A presença de empresas malaias como Petronas e Yinson Production no mercado brasileiro, mencionada por Anwar Ibrahim durante sua participação no BRICS Business Forum, demonstra o crescente interesse do setor privado malaio em oportunidades de investimento no Brasil. Esta expansão empresarial reflete a visão estratégica de Kuala Lumpur de diversificar seus mercados e fortalecer laços com economias emergentes.

A Malásia nos BRICS: de observador a parceiro

A Malásia oficializou seu status de país parceiro dos BRICS em 1º de janeiro de 2025, tornando-se uma das nove nações a aderir a esta nova categoria criada durante a Cúpula de Kazan em 2024. Este status representa um passo intermediário em direção à possível adesão plena ao bloco, permitindo à Malásia participar de fóruns e iniciativas dos BRICS sem os compromissos integrais da membresia completa.

A decisão de buscar aproximação com os BRICS reflete a estratégia malaia de diversificação de parcerias e redução da dependência de arranjos dominados pelas potências ocidentais. Como país parceiro, a Malásia pode contribuir para as discussões sobre reforma do sistema financeiro internacional, desenvolvimento de mecanismos de pagamento alternativos e promoção do comércio em moedas locais.

O timing da adesão malaia aos BRICS como país parceiro coincide com sua presidência da ASEAN, criando uma oportunidade única para servir como ponte entre os dois agrupamentos. Esta posição permite à Malásia articular os interesses do Sudeste Asiático dentro dos fóruns dos BRICS, potencialmente influenciando a agenda do bloco em direção a questões relevantes para economias de renda média.

A participação de Anwar Ibrahim no BRICS Business Forum 2025 marca a estreia oficial da Malásia nos eventos do bloco como país parceiro. Sua presença no evento, ao lado de líderes dos países membros plenos, simboliza o reconhecimento da crescente importância geopolítica e econômica da Malásia no cenário internacional.

Transcrição completa do discurso de Anwar Ibrahim

A seguir, reproduzimos na íntegra o discurso proferido pelo Primeiro-Ministro da Malásia, Anwar Ibrahim, durante o BRICS Business Forum 2025, no Rio de Janeiro:

Este é um momento histórico. Para aqueles que acompanham o curso da história, percebemos que a tentativa de salvar a voz das economias e países recém-emergentes – pós-colonialismo – foi liderada por Sukarno da Indonésia, Zhou Enlai da China, Jawaharlal Nehru da Índia e Nkrumah da África.

Foi uma tentativa ousada de garantir que a voz da consciência – daqueles que lutam pela liberdade e justiça – fosse ouvida. Não alcançou muito sucesso. Mas foi uma tentativa ousada.

Depois tivemos o Movimento dos Não-Alinhados. Antes disso, tivemos o G77 – ainda não alcançando os resultados desejados.

Agora, eu o saúdo, Presidente Lula, por ter a coragem de prosseguir com uma visão clara, um compromisso claro, para expressar as preocupações e aspirações do povo, particularmente do Sul Global.

[aplausos]

Mas por que estamos particularmente encorajados? Porque não é mais um esforço puramente da liderança política. Os líderes políticos têm um papel de iniciar esta reforma. Mas o que é espetacular sobre o BRICS é a participação da comunidade empresarial – o setor privado – que complementa este esforço, garantindo que a voz da razão, a voz pela justiça, não seja apenas ouvida, mas também implementada.

Junto com a liderança política, a comunidade empresarial, mulheres, jovens e o setor privado – saudamos todos vocês por este esforço.

[aplausos]

Vejo esta conferência sob uma luz mais positiva. Não estamos aqui para reclamar ou lamentar aqueles que acreditam em ações unilaterais – tarifas, protecionismo. Aqui, levantamos uma voz pelo multilateralismo, pela colaboração. Trabalhamos com países do Sul, mas ainda nos engajamos com países do Norte como amigos nesta nova aliança.

Mas queremos garantir que falemos de uma posição de força – não como países ex-coloniais fracos, mas como nações independentes com uma posição clara. E agora vocês veem – da aeroespacial à IA, da tecnologia alimentar à tecnologia verde – vocês têm esta nova força emergindo das economias emergentes.

E acredito que esta iniciativa do BRICS terá sucesso de maneiras que poderão alterar e redirecionar o curso da história humana.

Muito obrigado por este esforço.

[aplausos]

Venho da Malásia. E na ASEAN, deliberamos sobre essas questões. Primeiro, devemos ser coesos. Devemos falar como um só – baseados em arranjos multilaterais – e devemos promover o princípio da centralidade: fazer amizade com todos, apoiar causas justas.

Mas não é mais suficiente confiar em retórica e lugares-comuns políticos. O que precisamos é de ação concreta.

É por isso que um dos pilares da ASEAN é a comunidade empresarial. Devemos aumentar o comércio intra-ASEAN. E agora, também devemos aumentar o comércio intra-BRICS.

Temos um potencial enorme, e devemos agir sobre ele. Porque apenas com essa força podemos negociar – de forma segura, justa e equitativa – com todos os outros parceiros, multilateralmente.

Devemos exigir reforma: uma ordem internacional e multilateral democrática e justa – das Nações Unidas à OMC, ao FMI e ao Banco Mundial.

Novamente, apoio a posição tomada pelo Presidente Lula – um dos poucos líderes corajosos hoje – expressando as preocupações daqueles que há muito tempo não foram ouvidos.

Então obrigado, meu amigo.

[aplausos]

Na ASEAN, não apenas trabalhamos para melhorar o comércio inter-ASEAN; também experimentamos sistemas de liquidação financeira. Começamos a usar moedas locais.

Claro, ainda não estamos falando de desdolarização completa – ainda é um longo caminho. Mas começamos: Malásia com Indonésia, Malásia com Tailândia, e agora também com a China. Mesmo começando com 10 ou 20% faz diferença.

Não podemos continuar reclamando sem implementar nossos próprios planos entre nós e nossos vizinhos amigáveis.

E acredito que o que o Presidente Lula disse – e o que o presidente da confederação enfatizou – sobre garantir que o setor privado leve esses itens a sério realmente fará a diferença.

Mas deixem-me voltar ao ponto central: o BRICS em 2025 não é a primeira tentativa.

A Conferência de Bandung em 1955 – começou quando ainda estávamos lutando. Sem indústria. Sem nova tecnologia. Sem capacidade real – exceto por nossa humanidade compartilhada, nossas aspirações nacionais e liderança política.

Agora, temos liderança política com visão, e temos uma comunidade empresarial forte. Acredito que esta colaboração – entre mulheres e jovens, entre governos e setor privado, e com a sociedade civil – fará a diferença.

Agradeço novamente, Sr. Presidente. Nos vemos em Kuala Lumpur em outubro.

Obrigado.

[aplausos]

 

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Last Update: 06/07/2025