Uma família de classe média abastada, morando em frente ao mar no Rio de Janeiro. Um casal com um relacionamento harmonioso, uma mulher dedicada ao marido e aos filhos, um homem de conversa agradável, com círculo de amigos ativo e frequentadores de sua casa, atencioso, brincalhão e a construção dos ambientes, do tempo e dos personagens se dá com leveza e tranquilidade. Praia em família, reuniões regadas a bom uísque, gamão e boa comida, rotinas da casa ambientadas nos anos 70. Quem são eles? Até a metade do filme, apenas a caracterização do espaço, do tempo e dos personagens empenhados numa rotina familiar e social. Algumas conversas sutis de cunho político e nada mais.
Afinal, que história se pretende mostrar? Era o que eu me perguntava enquanto esperava o filme acontecer.
O fato é que não aconteceu! O filme causou-me uma enorme decepção por vários motivos. Apesar de acompanhar a onda midiática que promove o filme, dizer o oposto ao que todos estão dizendo pressupõe dados observáveis e comprováveis conforme prevê os princípios da argumentação, e, portanto, tenho razões para advogar a respeito.
O primeiro ponto que gostaria de elencar é sobre o caráter envolvendo a temática do filme. A peça cinematográfica retratada na trama é a autobiografia de Marcelo Rubens Paiva do livro de mesmo nome, com destaque para a vida de sua mãe, Eunice Paiva. Ela era advogada e se tornou ativista de causas indígenas após a prisão e desaparecimento de seu marido, o que resultou também na sua própria prisão juntamente com uma das filhas, Eliana Paiva, durante alguns dias no período da ditadura militar no Brasil.
Como adaptações de obras literárias ao cinema passam pela inspiração do diretor e ao enfoque que se deseja destacar ficaram questões não respondidas:
Respeitando a obra, tratando-se de um livro autobiográfico, a expressão da participação da personagem de Marcelo foi pífia, mesmo na infância. O maior destaque nesta fase do filme foi a educação progressista envolvendo as filhas. Ele pouco aparece, mesmo depois, já em São Paulo, Marcelo reaparece em cena no momento em que a família recebe o reconhecimento da morte de Rubens Paiva através da sua Certidão de Óbito, diferentemente do que nos mostra o livro.
Tratava-se de prestar uma homenagem ao ex-deputado Rubens Paiva e tantos outros que desapareceram e foram mortos neste período? Infelizmente a obra não nos mostra quem foi o ativista político do PTB, seu período de quando foi eleito deputado federal por São Paulo na legenda do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Paiva assumiu o mandato em fevereiro do ano seguinte e fez parte da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) formada na Câmara dos Deputados para investigar as ações do IPES-IBAD (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – Instituto Brasileiro de Ação Democrática). A instituição fornecia apoio financeiro a oradores e autores responsáveis por redigir artigos alertando sobre a suposta “ameaça vermelha” no Brasil. No dia 1º de abril de 1964, enquanto as forças militares avançavam para depor o então presidente João Goulart, Paiva realizou um discurso caloroso de cinco minutos na Rádio Nacional, no qual criticou o governador de São Paulo, Ademar de Barros, que apoiava o golpe, e convocou trabalhadores e estudantes a defenderem a legalidade. O público não pode se envolver com esta personalidade porque ela simplesmente foi subtraída.
Bem, então pensei que o tom do filme seria mostrar a força e obstinação da sua mulher em descobrir a verdade sobre o paradeiro de seu marido e enfrentar aquele período com 5 filhos para criar. Outra decepção! Eunice que foi advogada de causas indígenas (proto identitária) consultora do governo federal, do Banco Mundial, da ONU o que nos leva a pensar o quão contraditório é este caminho, considerando o “plano Truman” em construção em nosso país nesse período em oposição aos ideais de resistência socialistas da luta de Rubens Paiva.
Eunice, após o período em que teve que se desfazer de alguns bens, e cair em uma nova realidade sem o aporte financeiro de seu marido, resolve alugar a casa em que moravam no Rio de Janeiro e voltar para São Paulo, onde sua família vivia. Neste momento, o filme dá um salto temporal e ela reaparece como palestrante de causas indígenas, com os filhos já crescidos, e Marcelo na cadeira de rodas. Uma vida de classe média universitária.
Se observarmos a sinopse do livro onde nos diz que trinta e cinco anos após o lançamento de “Feliz ano velho”, Marcelo Rubens Paiva narra de forma comovente a trajetória de sua família em busca da verdade, onde Eunice Paiva é uma mulher de múltiplas vivências. Unida ao deputado Rubens Paiva, esteve presente durante o momento de sua cassação e exílio, em 1964. Com cinco filhos para cuidar, ela assumiu a responsabilidade sozinha em 1971, após o marido ser preso por agentes da ditadura e posteriormente ser torturado e morto. No meio das dificuldades, ela descobriu uma nova maneira de viver. Retomou os estudos e se formou em Direito, dedicando-se à defesa dos direitos dos povos indígenas. Jamais derramou lágrimas diante das lentes das câmeras. Quando menciona Eunice e sua recente batalha contra o Alzheimer, Marcelo Rubens Paiva também aborda delicadamente temas como memória, infância e paternidade. Adentra em um momento sombrio da história recente do Brasil para narrar — e buscar compreender — o que realmente aconteceu com Rubens Paiva, seu pai, naquele janeiro de 1971.
É exatamente neste ponto que acredito ser importante a crítica. Diante de tanta publicidade, toda a mídia tradicional enaltecendo e já o glorificando, vemos a criação de uma história pautada no distanciamento da causa, do afastamento do ídolo, do achatamento das personalidades inspiradoras para dar lugar ao final da temática feminista, indígena e ambiental, totalmente identitária. No livro, das 136 páginas de texto literário, a palavra “ditadura” aparece 63 vezes, a palavra “golpe” mais 36 vezes e “militar” 75 vezes, ou seja, palavras que fazem referência direta ao golpe militar de 64 a 85 foram 174 vezes mencionadas em um texto literário de 136 páginas! O que é mister destacar é que no livro “Ainda estou aqui” se fala de ditadura militar do início ao fim!
Então, o vazio permaneceu em mim até o final do filme, não me emocionou, não cumpriu nenhuma das propostas que considerei viáveis. A de retratar o período do golpe militar através de um dos seus representantes da resistência, a de mostrar uma mulher na luta com seus filhos, na busca de respostas e justiça, e por último, não cumpriu a principal de todas as razões que uma peça cinematográfica, que uma peça de arte deve cumprir: a de emocionar! Seja pelo drama, seja pela comédia, seja pela historicidade, seja pela ficção, pela estética, não importa! Lembrando-me perfeitamente de como me senti quando a tela se apagou no filme “Diários de Motocicleta”, completamente extasiada! Assistindo Koblic com Darín, a mesma coisa com Olga, Neruda, Frei Tito… enfim “Ainda estou aqui” terminou e eu ainda estou aqui pensando em qual foi a proposta original do diretor e principalmente: qual a intencionalidade e a ideologia por trás do filme. A análise que se pode supor, quando se entende que a indústria cinematográfica é um aparelho ideológico poderosíssimo, é a de que a mansidão, a não reação, a ideia de que a grande história é não participar dela tudo se encaixa perfeitamente. Enaltecer personagens não reativos, concordantes com a ditadura, levando o público repetir, repetir que o filme foi maravilhoso. Parece até constrangedor dizer algo contrário. Afinal a crítica, especialistas e o público estão aplaudindo! Me pergunto se uma peça bem produzida das mães da praça de maio não teria demonstrado maior resiliência, força e coragem frente ao regime militar. E mesmo no Brasil, quantas histórias de homens e mulheres que poderiam servir para nos inspirar, nos orgulhar e nos referenciar sobre a nossa própria história?
Me pergunto se a obra de Marcelo Rubens Paiva era adequada para adaptação ao cinema… e para finalizar: o filme aclamado pela crítica nacional e internacional, financiado pela Globo, dirigido pelo consagrado e milionário Walter Salles, resultou em insosso, cansativo e para quem gosta de bom cinema, o resultado foi decepcionante. Foi um filme de uma mulher doce, sensível, dedicada que aceitou o seu destino e seguiu a sua vida servindo a organizações do imperialismo! De Eunice, prefiro, sinceramente, a força e a coragem das muitas “Marias” que o nosso Brasil precisa contar a história, de mulheres que enfrentaram a ditadura, na defesa da sua família, na defesa da sua ideologia, foram torturadas, mulheres que são sobreviventes a tudo isso e que ainda estão aqui.