Zanele Muholi, nascida em Umlazi, Durban, em 1972, durante a vigência do apartheid (1948–1994) na África do Sul, define-se não como artista visual, mas como “ativista visual”. Identifica-se, ainda, como uma pessoa não binária. No centro de sua produção estão as existências das comunidades LGBTQIAPN+ e dos negros.
Em uma das paredes do Instituto Moreira Salles (IMS) da Avenida Paulista, que abriu, no sábado 22, a exposição Beleza Valente, está estampada uma das frases por Muholi repetida: “Uso a fotografia para confrontar e curar”.
Suas fotos, que já estiveram no Stedelijk Museum, de Amsterdã, na Tate Modern, de Londres, e no Museu de Arte Moderna de São Francisco, chegam em São Paulo sob uma curadoria muito cuidadosa, que busca, além de revelá-la para o público do País, estabelecer conexões entre Brasil e África do Sul.
Entre as mais de cem obras selecionadas, que abarcam sua produção desde o início dos anos 2000, estão também fotos tiradas por Muholi na residência feita na cidade, a convite do IMS, e em uma recente viagem à Bahia.
Durante a coletiva de imprensa realizada três dias antes da abertura da retrospectiva, a artista, que vestia calça, camisa, tênis e chapéu pretos – quase como se espelhasse seus autorretratos –, contou, inclusive, que uma das imagens exibidas foi feita dois dias depois da Festa de Iemanjá, em Salvador.
“Fiquei muito impressionada ao ver todas aquelas pessoas negras saindo da água”, relatou, com a voz calma e o sotaque da língua materna, o zulu. “Dois dias depois da festa, acordei com a certeza de que precisava expressar tudo o que eu tinha sentido. Na África do Sul, os negros foram durante muito tempo impedidos de frequentar as piscinas reservadas para os brancos.”
As consequências do apartheid sobre a formação da identidade de uma pessoa negra e queer são, ainda hoje, um elemento definidor do olhar da ativista. Seu trabalho fotográfico começou como denúncia, mas passou rapidamente para a luta por um direito que não está nas legislações: o direito de se sentir belo.
“Como se sentir bonito se alguém ri da sua aparência?”, pergunta ela, ao tentar explicar o que norteia seu projeto. “Muitos indivíduos trans são silenciados, e a visualidade é uma forma de expressão. Essas pessoas precisam ver suas belezas. Dessa forma, se sentem mais fortes. É como se a gente pudesse dizer: ‘Veja-nos. Ouça-nos. Estamos aqui.’”
“A visualidade é uma forma de expressão. É como se a gente pudesse dizer: ‘Veja-nos. Estamos aqui’”
Sua missão, diz, é reescrever uma história visual negra queer e trans, permitindo que essas pessoas tenham suas existências registradas em arquivos e expostas em museus a partir de suas individualidades – algo que lhes foi negado durante muito tempo.
Suas composições visuais são ricas em grafismos e em elementos surpreendentes. Seja ao retratar o concurso Miss Gay – que rompe com as competições que valorizavam um tipo muito específico de beleza feminina e branca –, seja ao utilizar pentes para compor, sobre sua cabeça, uma coroa, Muholi, por meio da arte, ressignifica a história. Os pentes, no apartheid, serviam como “teste do cabelo” para a classificação racial.
O ódio e o preconceito são assim transmutados em beleza e dignidade. Sobre o momento de retrocesso vivido em vários lugares do mundo, com perseguição às minorias, ela diz: “Devíamos ensinar, desde a infância, o respeito por pessoas que não estão fazendo nada contra você, que estão apenas vivendo a vida delas”.
Não por acaso, ver a Paulista em um domingo, com aquela variedade de tipos e grupos a caminhar pela avenida, foi algo que a encantou. “Achei tudo muito vibrante. E acho que esse tipo de manifestação de união, de conexão e de cada um ser quem quer não seria possível 20 anos atrás.”
Para que Zanele Muholi fotografe as pessoas não basta, porém, que as veja. “Preciso estabelecer um contato, desenvolver algum tipo de sentimento. A confiança é fundamental. Ainda estou esperando o momento certo de fotografar algumas pessoas”, diz. “O trabalho não é tão simples quanto parece ser quando as imagens estão nas paredes dos museus.” •
Publicado na edição n° 1351 de CartaCapital, em 05 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O direito à beleza’