Publicado originalmente no Portal da LIT-QI

No dia 17 de julho, a organização de Direitos Humanos, Human Rights Watch, postou um relatório controverso na qual injustamente acusa o Hamas e outros quatro grupos da resistência palestina de crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

Entre outras acusações, o relatório informa que a resistência palestina, em uma ação planejada e deliberada, executou 1.195 pessoas, das quais 815 civis, e que tomou 251 prisioneiros.

Estas conclusões estão baseadas em 144 depoimentos dos quais 94 testemunhas da ação, e 280 fotografias e vídeos.

Como foi o ataque?

O melhor documentário investigativo sobre o 7 de outubro até o momento foi produzido pela Al-Jazeera baseado nas informações disponíveis.

Às 6h da manhã do dia 7 de outubro de 2023, cerca de 1.200 combatentes da resistência palestina liderada pelo Hamas se reúnem e recebem as instruções sobre o ataque. São instruções de combate militar que explicitam quais os armamentos adequados para atacar tanques e veículos blindados.

Às 6h30, os combatentes rompem a barreira entre a Faixa de Gaza e os territórios ocupados por Israel em 1948 em dez pontos portando armamento letal leve (metralhadoras e mísseis portáteis antitanque). A ampla maioria entra por terra, caminhando ou em veículos comuns, enquanto alguns entram pelo mar e pelo ar com dispositivos improvisados. Simultaneamente, drones são lançados contra torres e antenas do sistema de comunicação israelense e milhares de foguetes são lançados de Gaza.

Apesar do serviço de inteligência israelense ter reunido informações sobre a preparação do ataque durante meses (e de ter recebido um alerta do serviço de inteligência egípcio poucos dias antes do ataque) nenhuma medida foi tomada, não houve qualquer ampliação de tropas na fronteira e as bases militares israelenses da região foram pegas de surpresa, tornando-se alvo fácil dos combatentes palestinos.

Os combatentes tomam bases militares e executam os soldados israelenses. Sem encontrar resistência, os combatentes se deparam com uma festa reunindo centenas de jovens (certamente a maioria militares na ativa ou na reserva, já que o alistamento militar é compulsório) executando vários deles. Também entram nos assentamentos israelenses (kibutz) próximos.

Às 8h30, algumas centenas de moradores de Gaza, voluntária e desordenadamente, passam pela barreira e chegam até assentamentos israelenses. 253 israelenses são aprisionados e levados para Gaza.

Às 9h, as tropas israelenses começam a chegar à região com helicópteros e tanques. Eles atacam qualquer alvo humano, e desta forma, matam palestinos e israelenses.

No total, 1.154 israelenses e estrangeiros foram mortos, dos quais 782 eram civis, e 372 eram soldados e policiais israelenses. Além destes, cerca de 200 palestinos foram mortos.

Quem matou os soldados e civis israelenses?

O Estado de Israel nunca aceitou uma investigação independente sobre os eventos de 7 de outubro e nunca permitiu o acesso de investigadores aos corpos dos mortos.

Exemplo disso foi o tratamento dispensado à comissão de inquérito nomeada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU para reunir provas e identificar executores de violações de Direitos Humanos, que servirão de base para processos por crimes de guerra no Tribunal Penal Internacional.

Chris Sidoti, um dos três membros da comissão afirmou no último dia 16 de abril que “no que toca o governo de Israel, vemos não apenas uma falta de cooperação, mas uma obstrução ativa de nossos esforços para reunir provas das testemunhas e vítimas israelenses relativas aos eventos ocorridos no sul de Israel”.

Até o momento não se sabe quantos foram mortos pelos combatentes palestinos e quantos foram mortos pelas tropas israelenses. Segundo reportagem do jornal Haaretz de 7 de julho de 2024, vários foram mortos pelas tropas israelenses para evitar que a resistência palestina tomasse prisioneiros, o chamado protocolo Hannibal.

Entre os 782 civis, 36 eram menores de idade sendo 13 menores de 12 anos. Não houve o assassinato de 40 bebês, nem qualquer dos mortos teve a cabeça decepada como a imprensa israelense e ocidental alentou nos primeiros dias após o ataque. As denúncias de estupro nunca foram investigadas de forma independente porque o governo israelense nunca permitiu que a Comissão de Inquérito da ONU pudesse fazê-lo.

O lugar do 7 de outubro na história

O ataque da resistência palestina liderada pelo Hamas recolocou a questão palestina na agenda mundial. Desta forma congelou a normalização de relações entre a maioria dos países árabes e Israel. O ataque também expôs a fragilidade na política de segurança de Israel baseada na limpeza étnica e no sistema de apartheid, e desta forma, desmoralizou o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu e provavelmente selou o seu futuro.

O ataque é ostensivamente denominado de terrorista pelas grandes potências imperialistas em todo o mundo. Infelizmente, o relatório da Human Rights Watch termina por se somar à condenação da resistência.

O relatório erra ao não exigir que autópsias e exames forenses sejam realizados por legistas criminais independentes para determinar a causa dos óbitos e, eventualmente, os executores.

O erro mais importante é, no entanto, descontextualizar os ataques de 7 de outubro da situação histórica de 76 anos de apartheid e limpeza étnica as quais está submetido o povo palestino, e desconsiderar o direito de resistência, inclusive armada, dos povos que vivem sob ocupação.

Em nenhum momento o relatório lembra que a resistência palestina, ao tomar presos israelenses, têm como único objetivo trocá-los pelos milhares de presos palestinos que a potência ocupante mantém, muitos dos quais sem qualquer acusação formal. Será que um povo que vive sob ocupação não tem o direito de tomar prisioneiros da potência ocupantes para trocar pelos seus?

Vozes discordantes

Sob o calor do genocídio de palestinos em Gaza, dos massacres na Cisjordânia e da repressão em Al-Quds/Jerusalém e em toda a Palestina ocupada em 1948, o povo palestino e vozes de importantes intelectuais estadunidenses de origem judia discordam da definição de “ataque terrorista” e da condenação aos ataques de 7 de outubro.

Até o momento, 71% dos palestinos de Gaza e da Cisjordânia concordam com a decisão da resistência palestina liderada pelo Hamas de lançar o ataque apesar do enorme custo material e humano. E 90% dos palestinos de Gaza e Cisjordânia entendem que a resistência palestina não cometeu qualquer atrocidade.

Judith Butler, professora e filósofa estadunidense, filha de imigrantes judeus, em uma mesa redonda em Paris no dia 3 de março, afirmou que o ataque de 7 de outubro não pode ser caracterizado como um ato terrorista, ou um ataque antissemita. Ela denominou o ataque de “ato de resistência armada”.

Uma reflexão muito interessante foi feita pelo historiador judeu estadunidense Norman Finkelstein. Filho de sobreviventes do Holocausto Nazista, ele é o autor de várias obras sobre a questão palestina entre as quais se destaca “A indústria do holocausto”.

Em entrevista para Marc Lamont Hill, o professor Finkelstein comparou o ataque de 7 de outubro com a famosa rebelião de negros escravizados liderada por Nat Turner no estado da Virgínia (Estados Unidos) em 1831. Nesta rebelião, os escravizados mataram cerca de 60 cidadãos brancos. Segundo os historiadores, essas mortes não se deram por acaso. O líder da rebelião, Nat Turner, deu a orientação de matar todos os brancos que encontrassem pela frente.

A reação dos escravistas brancos foi brutal. Além de denominar a rebelião negra de atroz, 120 escravos negros foram linchados de imediato, e mais 80 foram condenados à morte e enforcados. Além disso, novas leis escravistas foram impostas proibindo a alfabetização de negros e a reunião de negros para qualquer fim.

A rebelião de Nat Turner inspirou John Brown a liderar um assalto ao arsenal de armas do exército em Harpers’ Ferry na Vírginia em 1859 com o objetivo de iniciar um levante armado contra a escravidão. Preso, foi condenado à morte na forca.

Ambas rebeliões foram ostensivamente chamadas de atrozes pelas autoridades escravagistas. No entanto, hoje, após o fim da escravidão e a partir das conquistas do movimento pelos Direitos Civis, ambas rebeliões são consideradas marcos da luta contra a escravidão. Nat Turner e John Brown ocupam um lugar de honra no panteão de heróis que lutaram pela liberdade nos Estados Unidos. Será que a organização Human Rights Watch os condenaria por crimes de guerra e crimes contra a humanidade retroativamente?

Ainda é cedo para saber se o ataque de 7 de outubro foi mais um momento da luta palestina pela sua libertação, ou se foi o momento de virada contra o Estado racista de Israel. O tempo responderá.

Muitos criticam o ataque de 7 de outubro pela sua violência. O professor Finkelstein levanta a questão: quais as opções disponíveis para a resistência palestina? O Hamas venceu as eleições em 2006 e a reação de Israel, Estados Unidos e Europa foi impor um bloqueio contra a faixa de Gaza, transformando-a em um grande campo de concentração. O Hamas propôs uma trégua de longo prazo (hudna em árabe) mas Israel nunca aceitou negociar. Qual alternativa restava senão a resistência armada?

Ainda sobre a violência, o famoso dramaturgo e poeta Bertold Brecht, em uma crítica à historiografia plutocrata das elites e dos vencedores, escreveu:

“Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama de violentas às margens que o comprimem.”

NOTAS:

(1)

https://www.hrw.org/news/2024/07/17/october-7-crimes-against-humanity-war-crimes-hamas-led-groups

(2)

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Governo Lula,

Última Atualização: 18/07/2024