As ondas de calor que atingiram vinhedos franceses nas últimas semanas levaram uma das mais tradicionais vinícolas do país a fazer um anúncio histórico. Em 28 de agosto, a família Guinaudeau, proprietária do Château Lafleur, em Pomerol — uma das principais apelações de Bordeaux — enviou uma carta a clientes, parceiros e restaurantes. Em três páginas, comunicaram que, a partir deste ano, seus vinhos deixarão de integrar o sistema oficial de apelação, até então sinônimo de prestígio e preços mais altos. O motivo? Os efeitos cada vez mais intensos das mudanças climáticas, perceptíveis desde 2003.

Os sistemas de apelação são estruturas de regulamentação que indicam e protegem a origem geográfica e os métodos de produção das uvas e dos vinhos. Operam, na prática, como uma garantia de autenticidade e qualidade.

Para a família, 2025 confirma que a “anormalidade climática” veio para ficar. Em março, pleno inverno, quando se esperava chuva para recompor a umidade do solo, o volume ficou 73% abaixo da média histórica. Em junho, a seca se somou a temperaturas superiores a 41 °C.

O sistema de apelação, afirmam, engessa práticas essenciais, como a irrigação. “A questão não é mais se a irrigação é necessária, mas como deve ser administrada. Com base no monitoramento precoce e regular de todos os tipos de solo, já na primavera, o órgão regulador da denominação deveria ter poder para exigir do controlador das apelações um programa adaptado e flexível, a ser acionado em junho, se necessário. Quanto mais cedo a irrigação for realizada, mais eficaz e eficiente será em termos de uso da água.”

Na Borgonha — célebre por seu pinot noir e chardonnay — o calendário também mudou. Até pouco tempo, os produtores aproveitavam as férias escolares de julho e agosto para descansar, já que a colheita começava apenas em meados de setembro. Hoje, a realidade é outra: na última semana de agosto, muitos já estavam prontos para iniciar a vindima.

Na Alemanha, a família Selbach-Oster, do Mosel, espera mais uma colheita antecipada, prevista para a segunda quinzena de setembro. “Em alguns anos temos colhido antes do previsto, mas o ponto de maturação das uvas tem melhorado”, comenta Sebastian Selbach, que esteve recentemente no Brasil. A crise climática, embora traga enormes desafios, tem mostrado também alguns efeitos positivos em certas regiões.

“Quando comecei no comércio de vinhos, no início dos anos 80, havia duas, talvez três grandes safras por década na Alemanha. Hoje, são sete ou oito. Mas, para cada região que ganhou com o aquecimento acelerado, há três ou quatro que perderam dramaticamente”, diz o crítico de vinhos John Gilman.

No Brasil, os efeitos das mudanças climáticas também preocupam produtores. “Há mais instabilidade, as estações do ano já não são tão marcadas. O inverno pode ter poucas horas de frio, o que compromete a brotação, ou, em outro extremo, geadas acabam queimando os brotos”, explica Rodrigo Sozo, viticultor em Campos de Cima da Serra, no Rio Grande do Sul. “Cada safra se torna um desafio maior: precisamos nos adaptar à instabilidade de cada ano, seja excesso de chuva, seja estiagem.”

A lembrança de 2024, quando o estado sofreu uma enchente histórica, está fresca. “Com a enchente histórica no Rio Grande do Sul, a colheita foi especialmente difícil”, recorda Diego Cartier, sócio da Vivente Vinhos, que compra parte das uvas de Sozo. “Para quem produz vinhos de fermentação espontânea, como nós, o momento exato da colheita é decisivo — e essa instabilidade torna tudo ainda mais desafiador.”

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Last Update: 14/09/2025