O dia da marmota e o Brasil.
por João Silva
O hábito, segundo dizem, faz o monge. Não sou nem pretendo ser monge, porém hábitos criados na mais tenra infância se enraízam de forma inexplicável. Por exemplo, aquela ligação quase orgânica com os jornais. Pai, mãe, e segundo ela, o avô, começavam seus dias folheando e lendo os jornais, que eram chamados de diários. Andando pelas ruas de qualquer bairro encontrávamos Bancas de Jornal. Com vendedores simpáticos ou até muito antipáticos e impacientes com crianças.
Tornou-se um hábito parar na frente da banca e ver as manchetes nos jornais pendurados ou expostos e nas revistas. Seguíamos as estórias, ou histórias pelas manchetes de cada dia. As manchetes também marcavam o andar do tempo. As notícias eram estórias que fluíam por muitos dias, criando um quadro das transformações no mundo real em lugares distantes. Novas descobertas, arte, cinema, esportes. Estórias pessoais falavam sobre famosos, embora completamente desconhecidos no bairro. Havia lugares e pessoas retratados de forma fascinante mas às vezes trágica ou patética.
Já houve um tempo onde os repórteres de guerra eram admirados. Eram pessoas cujas palavras tinham o peso por terem testemunhado, sofrimento, o perigo ou a crueldade, vivenciando as vidas ou restos de vidas em algum inferno qualquer. Em minha ingenuidade falavam sempre a verdade, traziam as tragédias humanas e davam ênfase aos seres humanos no interior do conflito.
Durante dias e dias estórias iam sendo escritas e formando a história que depois aparecia nos livros-textos sem tantos detalhes. O filão policial era mais explorado por alguns jornais. Dizia-se que se fossem torcidos pingaria sangue. Além de guerras e crimes havia a economia e política. Aprendi que o homem depende da economia, mas que a economia depende apenas de alguns homens.
O tempo parecia correr mais lentamente com a economia dominada pela ditadura militar e dirigida por um panteão de tecnocratas, que apareceram numa foto digna de um time de futebol na capa das revistas e jornais. Com tantas sumidades juravam definitivamente levar o país ao desenvolvimento econômico e industrial. Nunca mais o país se livrou da tecnocracia econômica que apesar de não conseguir cumprir nenhuma promessa deixou como legado seus continuadores que ocupam, cargos, posições, colunas e manchetes dos jornais.
Apesar de tudo continuo com o mesmo velho hábito de ler diariamente as manchetes em bancas de jornal, quando encontro uma banca e pela tela do celular. Mas confesso que perdi a noção de tempo, me sinto vivendo o dia da Marmota. Todos os dias eu acordo e tenho a sensação de que estou no mesmo dia. O calendário é uma mera ilusão. As manchetes e as pessoas me cumprimentam como se fosse ontem. Pela janela tudo parece igual, continua a mesma chuva, o relógio da igreja não está quebrado, e as pessoas andam para lá e para cá do mesmo jeito. A única prova do tempo seria o jornal, mas as manchetes e fotos parecem querer demonstrar que nada mudou.
Esta semana festejaram os 30 anos do plano Real, na foto o time de economistas, com cabeças brancas repetem os mesmos mantras. Nas colunas econômicas colunistas alertam sobre a modernidade daquele plano econômico, que não deu certo, contra o que dizem ser a visão desenvolvimentista retrógrada dos governos Lula1, Lula 2 e agora Lula 3. Escondem que o Plano Real foi um truque cambial e monetário que, jogando engenhosamente com os índices, desconectaram a moeda dos índices inflacionários.
A manutenção do câmbio e a dos juros elevados resultaram em 1999 em recessão econômica na esfera real o que contradiz as manchetes que atribuem ao plano a estabilização econômica. Na verdade foi a estabilização de um paciente mantendo-o em coma e inerte. Ainda a se comprovar, e guardada as proporções, o plano motosserra de Milei tem muitas semelhanças, e está zerando a inflação e a economia real da Argentina.
De volta às manchetes vamos fazer um passeio no “tempo”.
Maio de 1998:
- Dólar aumenta e flutua.
- Israel é pressionado ao diálogo.
- Cai a entrada de dólares.
Outubro 1998:
- Brasil tem que fazer ajuste fiscal com urgência.
- Exame irá dizer se menina fará ou não aborto.
- FMI diz que 1999 será pior do que 1998
Setembro 1998:
- BC abre espaço para elevar juros.
- FMI cobra do governo política monetária com credibilidade.
- Meta inflacionária em 99 é 8%.
Setembro 1999:
- Governo perde 16.9 bi em isenções fiscais.
- Oposição destrutiva (contra reforma previdenciária).
Janeiro 2009:
- Israel aceita discutir a trégua.
- Autosuficiência do petróleo (pré-sal) é questionada.
- Vice-ministro da Defesa de Israel, Matan Vilnai pronunciou a palavra Shoah (nome hebraico para o holocausto) para descrever o destino de Gaza, caso fosse usada como plataforma para ataques a Israel. (A CONIB não se manifestou na época mas protestou recentemente, quando Lula usou o termo holocausto).
Fevereiro 2009:
- Netanhyahu se elege.
- Avigdor Lieberman, político de direita de Israel do grupo de Netanhyahu, propõe a expulsão dos árabes-israelenses.
Janeiro de 2010:
- Editorial faz ameaça velada em governo Lula: “retomada do crescimento pode causar apagão nos transportes e gerar caos.”
Poderia continuar seguindo as manchetes ao longo do tempo, mas eu temo que seria repetitivo. Estas manchetes foram extraídas principalmente do Estadão e Correio Brasiliense. Um certo ditado diz que a história se repete como farsa, mas me parece que a farsa se repete como história. Notem que tanto na questão do conflito Israel x Palestina, e na economia, as manchetes parecem as mesmas.
João Silva – Possui graduação em Física pela Universidade de São Paulo (1976), mestrado em Pos Graduação Em Física pela Universidade de São Paulo (1979) e doutorado em Física pela Universidade de São Paulo (1987). Atualmente é professor associado I da Universidade Federal de Santa Catarina.
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