Do poço ao posto, da tecnologia à defesa: o desmonte sistêmico da marinharia brasileira após 2016
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
Introdução
Os capítulos anteriores demonstraram como a marinharia brasileira foi historicamente construída como um sistema integrado, no qual energia, logística, indústria naval, navegação interior e defesa territorial não constituíam setores estanques, mas partes de um mesmo arranjo estratégico. A partir de 2016, esse sistema não foi apenas enfraquecido: ele foi deliberadamente desarticulado.
Este capítulo analisa o período posterior ao golpe de 2016 como um ponto de inflexão histórico, no qual se rompeu a integração que sustentava a soberania energética, a cabotagem nacional, a indústria naval, a produção tecnológica e a vigilância do território marítimo e fluvial. Não se trata de enumerar decisões isoladas, mas de compreender a lógica sistêmica do desmonte e suas consequências cumulativas.
O argumento central é simples, ainda que suas implicações sejam profundas: ao destruir a integração do poço ao posto, o Brasil substituiu fluxos internos por fluxos externos, reduziu sua cabotagem, ampliou sua dependência da navegação estrangeira, doou tecnologia estratégica e fragilizou sua própria capacidade de defesa e vigilância marítima. O resultado não foi eficiência, mas regressão estrutural.
Para tornar esse processo inteligível, o capítulo organiza-se em eixos analíticos complementares, que não devem ser lidos como compartimentos estanques, mas como faces distintas de um mesmo fenômeno histórico.
1. A ruptura da integração do poço ao posto: energia, logística e cabotagem
Durante décadas, a política energética brasileira estruturou-se a partir de um princípio simples e decisivo: a integração do poço ao posto. Explorar petróleo, transportá-lo com frota própria, refiná-lo no território nacional e distribuí-lo internamente não era um detalhe administrativo nem uma escolha ideológica contingente. Tratava-se da base material da soberania energética e da própria existência de uma marinharia nacional funcional.
Enquanto esse sistema permaneceu integrado, o petróleo extraído nos campos offshore precisava, necessariamente, ser incorporado a um fluxo logístico interno. O óleo cru era trazido por cabotagem nacional, operada majoritariamente pela Transpetro, desde os poços até terminais costeiros como São Sebastião, Paranaguá e Camaçari. Desses terminais, seguia para refinarias localizadas em território brasileiro. Após o refino, os derivados retornavam ao mercado interno por dutos ou por nova etapa de cabotagem. O resultado era um circuito fechado, previsível e contínuo, que sustentava frota própria, planejamento logístico de longo prazo, estaleiros ativos e formação permanente de tripulações e técnicos.
Esse arranjo dava sentido econômico à cabotagem energética. Ela não existia por proteção artificial ou por reserva de mercado, mas porque o fluxo físico das mercadorias a tornava indispensável. A Transpetro, nesse contexto, não era uma subsidiária acessória da Petrobras, mas o elo logístico que materializava, no mar, a política energética nacional. A cabotagem não era um fim em si mesma, mas consequência direta da integração produtiva.
A partir de 2016, essa lógica foi conscientemente desmontada. O fatiamento da Petrobras, o fechamento e a alienação de refinarias e o esvaziamento operacional da Transpetro romperam o circuito interno que sustentava a marinharia energética. O petróleo bruto deixou de ser destinado prioritariamente ao refino doméstico e passou a ser exportado diretamente, em sua maior parte por navegação oceânica estrangeira. Os derivados, por sua vez, passaram a ser importados, também por navegação oceânica estrangeira, para terminais dedicados exclusivamente ao recebimento de combustíveis prontos.
Do ponto de vista logístico, a mudança é elementar, mas devastadora: um fluxo interno foi substituído por dois fluxos externos. Onde antes havia cabotagem nacional estruturante, passou a haver exportação de óleo cru e importação de derivados. A cabotagem não apenas foi aberta a empresas estrangeiras; ela foi materialmente reduzida em volume, porque o próprio fluxo que a justificava deixou de existir. Não se trata de eficiência, concorrência ou modernização, mas de supressão física da base econômica da navegação nacional.
O resultado desse rearranjo foi a criação de uma dependência estrutural da navegação estrangeira para garantir o abastecimento interno de combustíveis. O Brasil passou a pagar frete, seguro e serviços logísticos internacionais para movimentar aquilo que antes controlava com frota própria. Onde havia planejamento, passou a haver contratação oportunista de transporte, sujeita a variações de preço, disponibilidade de navios e interesses alheios ao país.
Ao romper a integração do poço ao posto, não se desmontou apenas um modelo empresarial. Desmontou-se o fundamento logístico da marinharia brasileira, com efeitos em cascata sobre a indústria naval, a formação de pessoal e a capacidade de planejamento estratégico. A redução da cabotagem energética não foi um efeito colateral indesejado; foi a consequência lógica de uma decisão política que substituiu a integração nacional pela inserção subordinada no comércio internacional de energia.
2. O pré-sal e a doação de tecnologia: da primazia mundial à regressão estratégica
Poucos países, ao longo da história do capitalismo industrial, lograram construir vantagens tecnológicas genuinamente próprias em setores estratégicos. O Brasil foi um deles. Ao dominar a exploração de petróleo em águas profundas e ultraprofundas — e, posteriormente, ao tornar-se o único país do mundo capaz de explorar o pré-sal em escala industrial —, o país alcançou uma posição singular no sistema energético internacional. Essa primazia não era retórica nem circunstancial; era mensurável, reconhecida e cobiçada.
O domínio tecnológico brasileiro em exploração offshore não surgiu espontaneamente. Ele foi resultado de décadas de investimento público contínuo, conduzido pela Petrobras, em estreita articulação com universidades, centros de pesquisa, fornecedores nacionais e engenharias próprias. Desenvolveram-se soluções inéditas em sísmica, perfuração, completação, elevação artificial, engenharia de reservatórios, materiais e sistemas de produção submarina. O pré-sal, em particular, exigiu a resolução simultânea de desafios extremos: grandes profundidades, altas pressões, elevadas temperaturas, camadas espessas de sal e corrosividade acentuada.


Ao vencer esses obstáculos, o Brasil não apenas garantiu acesso a uma imensa reserva energética; criou conhecimento. E conhecimento, em setores de fronteira, é o ativo mais valioso que um país pode deter.
Essa primazia tecnológica conferia ao Brasil poder de barganha, autonomia estratégica e capacidade de liderar a agenda global em exploração offshore. O país não dependia de soluções importadas; ao contrário, era exportador de know-how, ainda que de forma controlada. O pré-sal, até então, constituía uma exclusividade tecnológica brasileira, no sentido mais estrito do termo.
A partir de 2016, esse patrimônio foi deliberadamente dilapidado. Ao desestruturar a Petrobras, fragilizar seus centros de pesquisa, interromper programas de desenvolvimento tecnológico e abrir irrestritamente os campos do pré-sal à operação de grandes grupos internacionais, o país transferiu conhecimento estratégico sem contrapartida.
Não se tratou de cooperação tecnológica equilibrada nem de parcerias estratégicas. O que ocorreu foi uma doação de tecnologia, na medida em que o Brasil abriu mão de sua posição dominante sem exigir transferência inversa, sem preservar liderança e sem estabelecer mecanismos de proteção do conhecimento acumulado.
O efeito desse movimento foi rápido e profundo. Países e empresas que antes dependiam do conhecimento brasileiro passaram a dominar técnicas similares, aplicando-as em outras regiões do globo. O Brasil perdeu sua posição relativa na fronteira tecnológica e passou a disputar espaço como produtor de óleo cru, não mais como líder tecnológico.
Esse retrocesso compromete a capacidade futura de inovação, reduz o valor agregado da produção nacional e limita a possibilidade de reconstrução de uma indústria naval e de engenharia de alta complexidade. Ao abdicar da primazia tecnológica, o Brasil abriu mão de ocupar os elos superiores da cadeia global de valor, condenando-se novamente à condição de fornecedor de recursos naturais.
A perda da primazia tecnológica não é facilmente reversível. Diferentemente de ativos físicos, o conhecimento estratégico exige continuidade, massa crítica e tempo. Ao interromper esse ciclo, o país não apenas perdeu posição; perdeu futuro.
3. Indústria naval, navegação interior e abandono territorial: quando o desmonte atinge o Brasil profundo
O desmonte da integração energética e a perda da primazia tecnológica produziram um efeito em cascata que foi muito além do setor offshore e da navegação oceânica. Ao destruir a escala, a previsibilidade e a continuidade da demanda naval, o país atingiu os ramos mais especificamente brasileiros da marinharia: a navegação interior e fluvial, em especial na Amazônia e no Centro-Oeste. Aqui, o impacto assume contornos ainda mais graves, pois deixa de ser apenas econômico ou industrial e passa a ser territorial e humano.
A indústria naval brasileira nunca foi homogênea. Ao lado dos grandes estaleiros voltados a navios petroleiros, plataformas e embarcações de apoio offshore, existia uma rede de estaleiros médios e pequenos, distribuídos pelo território, dedicados à construção e manutenção de embarcações fluviais. Esses estaleiros produziam barcos amazônicos, recreios, empurradores, balsas, lanchas de transporte misto, embarcações hospitalares e ambulanchas. Não se tratava de um setor residual, mas de um ramo estruturalmente ligado à geografia brasileira.
Diferentemente do que ocorre em países centrais, onde a navegação interior é complementar a redes rodoviárias e ferroviárias densas, no Brasil — e particularmente na Amazônia — a navegação fluvial é o próprio sistema de integração. Em extensas regiões do país, não há estrada, ferrovia ou alternativa logística viável. O rio não complementa o território; ele o organiza.
Quando o sistema naval-industrial foi desmontado após 2016, esses estaleiros regionais foram atingidos de forma quase imediata. A interrupção das encomendas públicas, o colapso da cadeia de fornecedores e a perda de mão de obra especializada tornaram inviável a renovação da frota fluvial. Estados e municípios, estrangulados fiscalmente, deixaram de encomendar embarcações para transporte escolar, fiscalização ambiental, segurança pública e atendimento de saúde.
Aqui emerge um ponto fundamental: essas embarcações não existem no mercado internacional como produtos padronizados. Barcos amazônicos não são versões simplificadas de navios marítimos, nem podem ser importados em escala. São projetos adaptados a regimes hidrológicos extremos, a calados variáveis, a longas distâncias sem infraestrutura de apoio e à convivência entre carga, passageiros e serviços públicos. Quando a base industrial nacional é desmontada, não há substituição possível.
O caso das ambulanchas é particularmente revelador. Elas não navegam no mar, não competem com navios oceânicos e não interessam a armadores internacionais. Dependem integralmente de projeto, construção, manutenção e operação locais. Quando os estaleiros regionais fecham e a cadeia de suprimentos se desfaz, o serviço simplesmente desaparece. O resultado é o aumento do tempo de resposta a emergências médicas, o isolamento de comunidades ribeirinhas e a deterioração de indicadores básicos de saúde e segurança.
Esse processo caracteriza algo mais profundo do que desindustrialização: trata-se de abandono territorial por via logística. Ao desmontar a marinharia nacional, o país deixou de assegurar sua presença cotidiana em regiões onde o Estado só existe por meio do barco. A navegação fluvial não é apenas transporte; é escola, hospital, fiscalização, integração e soberania.
O paradoxo é evidente. Ao mesmo tempo em que o discurso oficial exaltava a eficiência de mercado e a abertura econômica, ampliava-se o vazio logístico em regiões inteiras do país. A lógica primário-exportadora, concentrada no litoral e voltada ao exterior, não incorpora a Amazônia e o Centro-Oeste fluvial como espaços de cidadania, mas apenas como áreas de extração de recursos naturais.
A destruição da indústria naval e da navegação interior revela, assim, o caráter antiterritorial do projeto consolidado após 2016. Não se trata apenas de escolher importar navios ou terceirizar serviços. Trata-se de aceitar que vastas parcelas do território nacional deixem de ser integradas, porque não geram retorno financeiro imediato para o capital rentista.
Nesse sentido, o desmonte da marinharia brasileira atingiu seu ponto mais cruel justamente onde ela era mais insubstituível. No mar, ainda é possível contratar frete estrangeiro. Nos rios amazônicos, não. Quando o barco desaparece, o Estado desaparece junto.
4. Defesa, vigilância marítima e soberania: quando a ausência fragiliza o território
A desmontagem da marinharia brasileira após 2016 produziu um efeito pouco discutido, mas de enorme gravidade estratégica: a fragilização da defesa e da vigilância do território marítimo e fluvial. Ao reduzir a cabotagem nacional, desmontar a indústria naval e substituir fluxos internos por navegação estrangeira, o país não apenas se tornou mais dependente logisticamente; tornou-se menos visível para si mesmo em suas próprias águas.
A defesa marítima de um país com a extensão do Brasil não se faz exclusivamente com navios de guerra, sensores sofisticados ou satélites. Ela depende, antes de tudo, de presença cotidiana, contínua e distribuída. Historicamente, a marinharia civil sempre integrou, ainda que de forma informal, o sistema de vigilância marítima. Embarcações nacionais, operando rotas regulares de cabotagem, constituem uma camada difusa de observação permanente, impossível de ser substituída por meios exclusivamente militares.
Todas as embarcações de médio e grande porte operam com radares, sistemas de navegação e comunicações. Quando essas embarcações são nacionais, tripuladas por profissionais brasileiros e operando sob bandeira brasileira, elas formam uma rede integrada de sensores móveis, cobrindo extensas áreas do litoral e das rotas costeiras. Essa rede permite detectar manchas de óleo, identificar pesca ilegal, observar tráfego irregular e reportar atividades potencialmente danosas à soberania e à vida marítima às autoridades competentes.
A cabotagem nacional, nesse sentido, não é apenas um instrumento econômico. Ela é um ativo estratégico de defesa. Sua função não é substituir os meios da Marinha de Guerra, mas complementá-los, ampliando o alcance da vigilância a um custo marginal quase nulo. Trata-se de uma forma de defesa distribuída, baseada na presença civil organizada e nacional.
Ao desmontar esse sistema, o país produziu uma forma de cegueira operacional difusa. A multiplicação de embarcações estrangeiras navegando regularmente em águas jurisdicionais brasileiras não contribui para a vigilância do território. Essas embarcações não têm compromisso com a soberania nacional, com a proteção ambiental ou com o reporte de irregularidades. Mesmo quando operam legalmente, não integram o sistema nacional de defesa.
O resultado é um paradoxo estratégico: o Brasil continua a investir em meios militares sofisticados, mas opera em um ambiente com menos informação cotidiana, menos observação distribuída e maior dependência de monitoramento pontual. Em uma área tão vasta quanto a Amazônia Azul, essa perda de capilaridade informacional eleva os custos da defesa, reduz a eficiência do controle e amplia o espaço de atuação de atividades ilícitas.
Essa fragilização atinge também a defesa da vida marítima. A detecção precoce de vazamentos, descargas ilegais e acidentes depende menos de sensores remotos e mais de presença humana contínua no mar. Navios de cabotagem nacionais, operando rotas regulares, são frequentemente os primeiros a observar anomalias. Quando essa presença desaparece, o tempo de resposta aumenta, os danos se ampliam e a responsabilização se torna mais difícil.
Há ainda uma dimensão menos visível, mas igualmente relevante: a inteligência marítima. A circulação permanente de embarcações nacionais cria familiaridade com padrões normais de tráfego, permitindo identificar rapidamente comportamentos anômalos. Ao substituir essa presença por navegação estrangeira, o país perde essa referência cotidiana e torna-se mais vulnerável a operações de inteligência de terceiros.
A defesa não se improvisa. Ela é resultado de sistemas construídos ao longo do tempo, baseados em integração, continuidade e presença. Ao abdicar da cabotagem nacional como parte do sistema de vigilância, o Brasil abriu mão de um componente que não pode ser importado nem terceirizado.
O desmonte da marinharia brasileira revelou, assim, um erro conceitual profundo: tratar defesa como um setor isolado, separado da logística, da indústria e da navegação civil. Na realidade, defesa, marinharia e soberania territorial são inseparáveis. Ao enfraquecer a presença nacional no mar e nos rios, o país tornou-se mais dependente, mais vulnerável e menos capaz de proteger seus próprios interesses estratégicos.
Conclusão — Quando o desmonte tem nome, método e beneficiários
Ao longo deste capítulo, ficou demonstrado que o colapso da marinharia brasileira após 2016 não foi fruto de acaso, incompetência administrativa ou erro de diagnóstico econômico. O que se observa é a execução coerente de um projeto político e geopolítico, conduzido por atores identificáveis, com método definido e beneficiários claros.
No plano externo, é impossível ignorar a atuação do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que passou a interferir diretamente em setores estratégicos da economia brasileira sob o pretexto do combate à corrupção. Essa atuação não se deu por vias diplomáticas tradicionais, mas por meio de cooperação judicial assimétrica, sem controle político, sem transparência institucional e em aberta violação ao princípio da soberania nacional. O efeito concreto dessa interferência foi a desestruturação da Petrobras enquanto empresa integrada, a destruição das grandes construtoras nacionais dedicadas às obras pesadas e a abertura do pré-sal em condições favoráveis a interesses estrangeiros.
No plano interno, o instrumento dessa operação foi a Operação Lava Jato, que extrapolou sistematicamente os limites do devido processo legal para atuar como fator de reorganização estrutural da economia brasileira. Sob a retórica moralizante, desmontou-se o núcleo produtivo que sustentava a política energética, a indústria naval, a cabotagem e a produção tecnológica nacional. Não se tratou de punir indivíduos, mas de inviabilizar sistemas inteiros.
Essa ação externa encontrou terreno fértil em uma coalizão interna de forças conservadoras, historicamente avessas a qualquer projeto de desenvolvimento que transcendesse o papel do Brasil como exportador primário. O agronegócio voltado à exportação, o mercado financeiro rentista e os grandes grupos de comunicação atuaram de forma convergente, naturalizando a destruição da integração produtiva como se fosse modernização, e apresentando a desnacionalização como virtude.
O papel da grande imprensa foi particularmente relevante. Ao substituir análise por slogans, ao tratar como inevitável aquilo que era escolha política e ao silenciar sistematicamente sobre os efeitos logísticos, tecnológicos e defensivos do desmonte, ela cumpriu função essencial na legitimação do processo. O país foi induzido a aceitar como progresso aquilo que, na prática, representava regressão estratégica.
Nesse contexto, Michel Temer e Jair Bolsonaro não foram espectadores passivos nem gestores de transição neutra. Seus governos atuaram como fiadores políticos do desmonte, oferecendo segurança jurídica, cobertura institucional e velocidade decisória àquilo que já estava em curso. Foi sob s administração desses dois presidentes que se aceleraram o fatiamento da Petrobras, a venda de ativos estratégicos a preços vis, a desarticulação da Transpetro, a abertura irrestrita do pré-sal e a consolidação de um modelo logístico dependente da navegação estrangeira.
O resultado desse processo é inequívoco. O Brasil rompeu a integração do poço ao posto, reduziu sua cabotagem e desmontou sua marinharia, destruiu sua indústria naval e abandonou a navegação interior, doou tecnologia estratégica construída com recursos públicos, multiplicou a presença estrangeira em suas águas jurisdicionais e fragilizou sua própria capacidade de defesa e vigilância marítima.
Nada disso ocorreu por erro de cálculo. O que se vê é a reversão consciente de um projeto nacional, substituído por uma inserção subordinada no sistema internacional, baseada na exportação de commodities, na dependência logística e na abdicação do domínio tecnológico.
Ao final, resta uma constatação incômoda, mas necessária: o desmonte da marinharia brasileira não foi imposto de fora contra a vontade do país. Ele foi viabilizado internamente, por forças que sempre lucraram com um Brasil dependente, desintegrado e periférico. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos atuou como catalisador; a Lava Jato, como instrumento; a coalizão conservadora, como base de sustentação; e os governos Temer e Bolsonaro, como operadores políticos.
Dar nome aos bois não é retórica. É condição para compreender o passado e, sobretudo, para impedir que o mesmo roteiro se repita sob novas embalagens.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Affairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.
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