O desmonte da educação pública e a condenação silenciosa da docência, por Alexandre Coslei

O desmonte da educação pública e a condenação silenciosa da docência

por Alexandre Coslei

Darcy Ribeiro alertou que “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”. Passadas décadas de sua advertência, o cenário confirma o acerto profético de suas palavras. A precarização da carreira docente, especialmente nas redes públicas estaduais e municipais, aprofunda-se com ferramentas institucionais que disfarçam retrocessos como modernizações. A mais emblemática delas é o chamado Processo Seletivo Simplificado, hoje utilizado para admitir professores temporários sob contratos frágeis e desprovidos de garantias.

A prática — já consolidada em estados como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro — promove a rotatividade docente, que segundo relatório da OCDE (2021), está diretamente associada à queda de desempenho dos alunos e à interrupção da continuidade pedagógica. Professores entram e saem das salas de aula sem tempo hábil para estabelecer vínculos duradouros com a comunidade escolar ou desenvolver projetos pedagógicos consistentes. No limite, a figura do educador torna-se um prestador de serviço transitório — descartável e desprotegido.

Além disso, surgem agora os concursos públicos sob regime da CLT, em substituição ao regime estatutário. A cidade de Duque de Caxias é um exemplo. A lógica é flexibilizar direitos, facilitar demissões e esvaziar a estabilidade, que sempre foi um pilar essencial da independência e da valorização da função docente. A CLT, quando aplicada ao funcionalismo, fragiliza o educador e o coloca à mercê de pressões políticas ou administrativas, transformando a escola em um ambiente ainda mais instável.

A remuneração segue vergonhosa. De acordo com o Anuário da Educação Básica de 2023, elaborado pelo Todos Pela Educação, professores da educação básica nas redes estaduais e municipais recebem, em média, 28% menos que outros profissionais com o mesmo nível de escolaridade. A hora-aula permanece desvalorizada, sem reajuste real em muitos estados há mais de cinco anos, e os pisos salariais estabelecidos pela Lei do Piso Nacional (Lei nº 11.738/2008) muitas vezes são ignorados ou judicializados.

Não bastasse o desprezo remuneratório, as condições de trabalho são frequentemente precárias. Faltam materiais didáticos, infraestrutura básica e apoio psicopedagógico. Em muitos municípios, professores acumulam funções, enfrentam superlotação de turmas e adoecem diante da sobrecarga, como apontou o Censo Escolar de 2022, que revela crescimento de licenças médicas por transtornos mentais entre docentes.

Diante disso, não surpreende o abandono da profissão. Segundo pesquisa da Fundação Carlos Chagas (2022), 41% dos professores da rede pública já consideraram mudar de carreira. O magistério, em vez de vocação, transformou-se em armadilha social.

Essa desvalorização tem consequências diretas na sociedade: aumento do analfabetismo funcional — hoje atingindo cerca de 29% dos brasileiros adultos, segundo dados do INAF (2023); a erosão do pensamento crítico; e o avanço de visões de mundo regressivas e autoritárias. O projeto de uma nação pensante parece ter sido arquivado.

E quando os professores reagem, vão às ruas, protestam contra cortes e abusos, são recebidos com violência — como visto em abril de 2024, na repressão aos docentes grevistas da rede municipal do Rio de Janeiro. O professor, outrora símbolo de respeito, é tratado como ameaça.

Enquanto isso, paradoxos saltam aos olhos. Um Secretário de Educação exalta a própria experiência como bolsista em Harvard em entrevistas de efeito, enquanto nas redes que comanda não preserva direitos dos professores. A hipocrisia institucionalizada: elogiam a valorização docente no exterior, mas são coniventes — ou protagonistas — da precarização local.

A educação, nesse modelo, não é prioridade: é obstáculo ao projeto político vigente, que parece preferir a ignorância à emancipação. Professores são hoje os sentinelas de uma trincheira solitária, abandonados por governos, ignorados por parte da sociedade e brutalizados quando se insurgem.

Enquanto o Brasil assiste ao agravamento da crise, o Ministério da Educação (MEC) parece mais empenhado em erguer barreiras burocráticas do que em oferecer soluções concretas. Sob o pretexto de garantir a qualidade do ensino, o MEC impõe novas exigências para a formação docente, ignorando a realidade de uma categoria tratada como incômodo — quando não como descarte.

A pergunta que se impõe, portanto, não é apenas “onde está o MEC?”, mas para onde estamos indo — e a que custo — ao naturalizarmos a decadência da educação pública brasileira.

Darcy Ribeiro tinha razão. E sua profecia hoje se desenha como realidade trágica: a destruição da educação pública como parte de um plano perverso, que caminha, silenciosamente, com o carimbo oficial do Estado.

Alexandre Coslei, jornalista e professor

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