O cataclismo do Rio Grande do Sul na convulsão de um planeta em crise
por Luís Carlos Silva
A catástrofe climática que assolou o território gaúcho, talvez a mais grave do Brasil em todos os tempos, se considerarmos as vidas perdidas, as pessoas feridas, o grande número de cidades submersas e os prejuízos materiais e econômicos, não deixa dúvidas quanto às reais consequências das mudanças climáticas. Em 2023, já havíamos sentido seus efeitos nos temporais incomuns que atingiram o Litoral Norte de São Paulo, provocando mortes e grandes estragos.
Prevenir enchentes de grandes proporções, com obras de engenharia para desviar cursos de água, como se aventa agora com a possibilidade de um canal para dar vazão à Lagoa dos Patos, é pertinente e necessário, mas não é uma solução plena para as ameaças da natureza, que sempre encontra caminhos e formas de reagir às agressões do setor humano. Conter o aquecimento global é a medida decisiva para evitar a repetição de episódios de grandes proporções, como inundações, secas prolongadas, como na Região Norte do Brasil, no Amazonas, deslizamentos de encostas em áreas montanhosas, derretimento de geleiras, como já está acontecendo, e maior incidência de tufões, dentre outras ocorrências. A Terra, em crise, terá cada vez mais convulsões se não tratarmos dela.
Todos precisam fazer sua parte nessa missão fundamental da humanidade. Uma das frentes mais importantes nesse processo diz respeito à gestão adequada dos resíduos sólidos, que são fontes menores de emissão de gases de efeito estufa. Infelizmente, o Brasil está atrasado nesse objetivo, apesar das boas leis já editadas para pôr fim ao problema. O Censo de 2022 do IBGE revelou que 18,4 milhões de pessoas residem em áreas sem serviços de coleta de lixo, tendo de queimá-lo, despejá-lo em terrenos baldios e locais públicos ou enterrá-lo nos próprios imóveis e, portanto, dispondo inadequadamente os resíduos sólidos.
É uma ameaça à saúde. Em várias cidades, os resíduos sólidos, geridos de modo equivocado, representam 10% das emissões de carbono. Os municípios nos quais esses problemas ocorrem, somando-se às causas das mudanças climáticas, são aqueles nos quais persistem os aterros a céu aberto, disseminadores de doenças, como a dengue, cuja epidemia é grave este ano, contaminadores do solo e mananciais hídricos, caldos de cultura para a proliferação de mosquitos e roedores, fontes de odores e causa de muito desconforto humano.
Somando as localidades sem coleta, apontadas pelo IBGE, com as cidades nas quais os resíduos recolhidos vão para aterros a céu aberto ou os chamados aterros controlados, também inadequados, o número de brasileiros expostos à ameaça ambiental atrelada à gestão equivocada dos resíduos urbanos passa de 70 milhões de habitantes, conforme é possível aquilatar por meio do cruzamento de dados de entidades do setor.
O Rio Grande do Sul, ironicamente, é um dos estados nos quais a gestão dos resíduos sólidos é mais avançada. Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SINIS), vinculado ao Ministério das Cidades, 92% dos habitantes urbanos são atendidos pela coleta. Porém, dentre os moradores da zona rural, são apenas 48,38%, e ainda há alguns poucos aterros a céu aberto. É preciso universalizar o recolhimento, tratamento e a destinação ecologicamente correta em todo o Brasil.
Cabe aqui abrir parênteses para destacar a providência emergencial bem-sucedida adotada pela prefeitura de Porto Alegre por ocasião das enchentes: criação de bolsões de resíduos para separações em áreas temporárias, evitando contaminações, alastramento de doenças e acidentes provocados pelos materiais arrastados pelas águas.
Os meios para atendermos no Brasil à meta de universalizar a coleta, tratamento e destinação correta dos resíduos sólidos encontram-se no Novo Marco do Saneamento (Lei 14.026/2020), que instituiu melhores condições para a gestão correta do lixo, ao estabelecer livre licitação para a prestação adequada dos serviços, com estímulo a investimentos privados e criação de empregos. Trata-se do complemento legal perfeito para que se cumpra a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), 14 anos após a promulgação dessa lei (nº 12.305, de 2 de agosto de 2010), que havia determinado a extinção dos aterros a céu aberto até 2014.
No entanto, ocorreu imensa romaria de prefeitos ao Congresso Nacional, pedindo a postergação das medidas e do cumprimento da legislação. Tiveram sucesso nessa reivindicação nociva ao planeta. Os prazos estabelecidos pelo Novo Marco do Saneamento também passaram a ser descumpridos. Ainda existem cerca de três mil aterros a céu aberto no País e numerosos locais sem coleta de resíduos sólidos.
Obviamente, esse problema não é o grande responsável pelo aquecimento global, mas se soma a outros fatores muito fortes, como a destruição de florestas, a queima de combustíveis fósseis, exploração descontrolada de recursos minerais e hídricos e práticas produtivas não sustentáveis e desprovidas de cuidados ambientais. Porém, precisa ser solucionado, assim como todas as demais causas, no contexto do grande e vital desafio da humanidade referente à agenda do clima.
Luís Carlos Silva é o presidente do instituto Valoriza Resíduos by ablp.
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