O corte de juros dos EUA e seus impactos globais, por Maria Luiza Falcão

O corte de juros dos EUA e seus impactos globais

por Maria Luiza Falcão Silva

No fim da tarde da quarta-feira (10), o Federal Reserve (Fed) anunciou o terceiro corte consecutivo da taxa básica americana, reduzindo-a para 3,50%–3,75%, o menor nível em três anos. A decisão era amplamente esperada, mas não por boas razões. O Fed age pressionado pelo mercado de trabalho que apresenta aumento da taxa de desemprego, queda na criação de vagas e pela persistência de uma inflação que segue cerca de um ponto percentual acima da meta de 2%. Não se trata de um corte para estimular a economia, mas sim para impedir que ela escorregue de vez para uma desaceleração mais profunda.

Segundo dados da Automatic Data Processing (ADP), divulgados também nesta semana, as empresas privadas dos Estados Unidos (EUA) eliminaram 32 mil postos de trabalho em novembro, contrariando previsões de analistas que esperavam uma geração de 40 mil vagas. A situação é particularmente complicada entre pequenos negócios — aqueles com menos de 50 empregados — que perderam 120 mil postos em apenas um mês. É um sinal claro de fragilidade, e não de vitalidade econômica.  A decisão do Fed vem num momento em que a economia americana enfrenta “incerteza elevada” e indicadores “consistentes com desaceleração”. Alguns analistas falam até em estagflação.

Um corte que revela medo, não confiança

A decisão de Jerome Powell ocorre sob as sombras de três fatores que pesam profundamente sobre a economia americana: a perda de dinamismo do mercado de trabalho, a persistência inflacionária e o impacto destrutivo da política econômica de Donald Trump, em especial seus tarifaços sobre a China e outras economias estratégicas.

De acordo com a Reuters, as tarifas impostas por Trump desde sua volta ao poder têm pressionado cadeias produtivas, encarecido insumos e reduzido margens industriais. Em vez de controlar preços, a guerra tarifária tem contribuído para manter a inflação sob pressão. O Fed, portanto, age com as mãos amarradas: corta juros porque a economia perde força, mas sabe que a inflação não está totalmente domada. O corte de 25 pontos-base é menos um gesto de estímulo e mais um freio de emergência.

A isso se soma o shutdown federal de 43 dias, que paralisou o governo americano, atrasou pagamentos, deteriorou a confiança de consumidores e empresas e interrompeu a coleta de dados oficiais do mercado de trabalho. Em outras palavras: o Fed navega meio às cegas, sem informações completas, num mar de choques tarifários e instabilidade política. Não há ciclo econômico tradicional aqui; há um ciclo Powell–Trump, de improvisos monetários para corrigir distorções fiscais e geopolíticas.

A comparação internacional ajuda a dimensionar o que está em jogo. Enquanto o Brasil conseguiu reduzir a inflação para perto de 4% ao ano, mantendo crescimento moderado mesmo sob juros elevados, os Estados Unidos vivem hoje uma espécie de estagflação atípica: crescimento fraco, inflação persistente em serviços essenciais e juros proibitivos para os usualmente praticados pelos EUA.

De acordo com o Bureau of Economic Analysis (BEA), o PIB norte-americano avançou menos de 1% na última leitura trimestral, após revisões para baixo que acenderam alerta na imprensa econômica. A Reuters descreveu o momento como “economia perdendo tração enquanto pressões de preços permanecem teimosas”. O Bureau of Labor Statistics (BLS) mostra que a inflação de serviços segue acima de 4%, muito distante da meta do Fed, que mantém os juros em torno de 3,9% o maior nível em mais de duas décadas. Não é a estagflação clássica dos anos 1970 — o desemprego ainda gira em torno de 4% —, mas é um quadro híbrido, suficientemente grave para minar o poder de compra da classe média e embaralhar a política monetária.

Dólar, câmbio e a reconfiguração das moedas globais

Para o resto do mundo, o movimento do Fed imediatamente reconfigura fluxos de capitais e moedas. Em teoria, juros mais baixos nos EUA reduzem a atratividade dos Treasuries e incentivam investidores a buscar retornos em economias emergentes. Isso, de fato, tende a ocorrer nas próximas semanas: o real deve se beneficiar, assim como as moedas do México, Índia, Indonésia e África do Sul dentre outras.

Mas o quadro é mais complexo. A inflação americana ainda está em torno de 3%, segundo dados recentes do Departamento de Comércio. A economia global vive sob tensões geopolíticas — Ucrânia, Oriente Médio, Taiwan — que fortalecem o dólar como porto seguro. E a instabilidade política interna dos EUA, acentuada pelo shutdown e pela imprevisibilidade fiscal de Trump, mantém os mercados tensos. Assim, embora o dólar deva se enfraquecer no curto prazo, o movimento não será linear. O mundo ainda dependerá, em momentos de pânico, da liquidez americana.

China: exportações fortalecidas e o efeito paradoxo

Uma das grandes ironias do momento é que o corte de juros nos EUA, somado à desvalorização do renminbi (nome oficial da moeda chinesa), tende a favorecer ainda mais a China. A fraqueza da moeda chinesa tornou bens e serviços mais competitivos no exterior, impulsionando exportações de gigantes como BYD, Chery, SAIC, Huawei e Xiaomi. Agora, com o Fed cortando juros, a pressão cambial sobre o renminbi diminui, permitindo à China navegar com mais tranquilidade.

Contudo, esse benefício cambial convive com a hostilidade tarifária de Trump. A Reuters tem destacado que as tarifas adicionais impostas à China em setores como veículos elétricos, semicondutores e painéis solares funcionam como um cerco industrial. Têm pouco efeito anti-inflacionário nos EUA, mas criam pressões relevantes sobre cadeias produtivas globais. Portanto, a China emerge fortalecida num aspecto — câmbio — e pressionada noutro — tarifas.

Europa entra na zona de risco

Enquanto os EUA tentam evitar desaceleração e a China reorganiza suas exportações, a Europa permanece estagnada. O Banco Central Europeu (BCE) está condicionado por uma inflação que segue elevada em energia e alimentos. Segundo dados recentes do Eurostat, a indústria europeia opera em declínio desde o início de 2025, e a zona do euro não consegue crescer acima de 1%.

O corte de juros do Fed aprofunda essa assimetria: o BCE não pode acompanhar o afrouxamento monetário americano porque teme reacender a inflação, especialmente após choques de energia relacionados à guerra na Ucrânia. Se os EUA desacelerarem, a Europa perde ainda mais demanda externa. E se não puder cortar juros, verá sua recessão se agravar. É um cenário de aprisionamento político e econômico.

América Latina: uma janela de oportunidade — e de risco

A decisão do Fed cria um ambiente misto para a América Latina. De um lado, abre-se uma janela de captação mais barata para governos e empresas; de outro, cresce a volatilidade que historicamente penaliza economias dependentes de commodities. Países exportadores, como Brasil, Chile e Peru, podem ver preços do petróleo, do cobre e da soja subirem com a recomposição dos fluxos financeiros globais.

Mas tudo depende da velocidade da desaceleração americana. Uma queda mais brusca na demanda dos EUA atingiria em cheio nossas exportações industriais e agrícolas. E, como alerta o FMI em seu relatório semestral, a dependência excessiva de fluxos curtos — o chamado “hot money” — pode gerar apreciações cambiais que prejudicam a reindustrialização.

Para o Brasil, especificamente, o movimento tende a fortalecer o real e aliviar pressões inflacionárias importadas. O problema é que esse alívio não corrige nossos desequilíbrios estruturais, como a taxa de juros doméstica exorbitante, o hiato de investimentos públicos e a volatilidade política crônica promovida por parte do Congresso Nacional. Em outras palavras: o Fed ajuda — mas apenas na superfície.

Mercados financeiros: alívio imediato, dúvidas permanentes

As bolsas globais devem reagir positivamente nas próximas sessões, como ocorre sempre que o Fed injeta liquidez. Mas trata-se de um alívio nervoso. A inflação americana não está derrotada, a economia gera cada vez menos empregos e as tarifas de Trump funcionam como uma trava interna de produtividade. As empresas de tecnologia tendem a se beneficiar, enquanto bancos perdem margens com juros menores. Nada disso, porém, muda a trajetória de incerteza.

A própria Reuters sintetizou o humor dos mercados: o corte de juros é bem-vindo, mas não é sinal de confiança — é um sinal de temor. Se a economia americana estivesse sólida, o Fed não teria necessidade de cortar juros três vezes desde setembro.

Um mundo aprisionado entre Powell e Trump

A economia global entrou numa nova fase. Não se trata do típico ciclo em que juros mais baixos significam dólar fraco, expansão global e alívio para emergentes. O que vemos é outra coisa: um Banco Central tentando proteger a economia americana dos efeitos colaterais de uma política comercial destrutiva, enquanto enfrenta inflação resiliente e um mercado de trabalho enfraquecido.

Quando o Fed pisca, o mundo suspira — mas não fica calmo. A redução de juros traz um alívio momentâneo, porém revela fragilidades profundas. A economia internacional continua presa ao jogo de improvisações entre Powell e Trump, uma combinação que redistribui riscos, desorganiza cadeias produtivas e empurra o planeta para um 2026 marcado por volatilidade, tensões comerciais e incerteza estratégica.

Maria Luiza Falcão Silva – MSc em Economia (University of Wisconsin–Madison), PhD (Heriot-Watt University), Professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB), membro da ABED e do Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC/NEASIA).

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