Com a primeira fase do cessar-fogo no fim, um empreiteiro norte-americano surgiu como figura central para determinar se a Faixa de Gaza conseguirá uma paz mais duradoura ou voltará a cair na guerra. Steve ­Witkoff, a escolha tipicamente idiossincrática de Donald Trump para seu enviado especial ao Oriente Médio, também se viu no meio das negociações com a Rússia sobre o futuro da Ucrânia, sentado à frente do ministro das Relações Exteriores russo, Sergey Lavrov, em vez do verdadeiro emissário à região, Keith Kellogg.

Nas duas pastas, Witkoff está tecnicamente subordinado ao secretário de Estado, Marco Rubio, mas todas as capitais nacionais sabem que no mundo de Trump o poder flui pelas conexões pessoais com o presidente. Rubio é um ex-adversário que se tornou adesista, trazido ao governo em nome da conveniência. Witkoff e Trump, por sua vez, se conhecem há quase 40 anos.Dessa relação deriva o poder do empresário de 67 anos. Os interlocutores dos Estados Unidos sabem que ele é o emissário genioso de um líder volátil, capaz de passar do pleno apoio a xingamentos públicos em um átimo, a depender em grande parte de quem tiver a atenção de Trump.

Witkoff demonstrou sua influência ao fazer o cessar-fogo decolar. Em 10 de janeiro, ele acreditou que uma pausa estava próxima, depois de mais de sete meses de negociações sinuosas e inconsequentes. Naquela sexta-feira à noite, em ­Doha, onde havia se reunido com autoridades árabes, ligou para o gabinete de ­Benjamin Netanyahu e disse a assessores do primeiro-ministro que iria para Israel no dia seguinte. Os assessores explicaram que seria sábado e que ­Netanyahu não tratava de negócios no Sabá, mas se reuniria com prazer com o enviado norte-americano algumas horas depois, quando caísse a noite. ­Witkoff não quis saber e, segundo relato no jornal ­Haaretz, disse-lhes “em inglês ácido que não estava interessado no Sabá”.

O advogado pagou um sanduíche na madrugada para o futuro magnata. Assim nasceu a relação

O líder israelense desistiu de observar o dia sagrado e recebeu Witkoff em seu gabinete, onde o enviado lhe disse para aceitar o cessar-fogo que ele evitava há tanto tempo. “O presidente tem sido um grande amigo de Israel”, disse Witkoff a Netanyahu, de acordo com The Wall ­Street Journal, “e agora está na hora de retribuir a amizade.” Netanyahu teria concordado imediatamente e permitido que Witkoff voltasse a Doha para finalizar o acordo. O primeiro-ministro sabia que o enviado estadunidense falava pelo presidente, a quem ele não ousaria irritar.

O elo de confiança entre Trump e ­Witkoff remonta a um encontro casual e um sanduíche de presunto e queijo numa delicatessen de Nova York há quase quatro décadas. Witkoff nasceu no Bronx e foi criado em Long Island, filho de um alfaiate feminino. Ele se formou em Direito e trabalhava em um negócio imobiliário em 1986, do qual Trump participou. O advogado tinha ido à delicatessen às 3 da manhã para pegar comida para sua equipe e Trump estava lá, faminto, mas sem nenhum dinheiro no bolso. “Pedi para ele um presunto com queijo suíço”, disse Witkoff num tribunal em 2023, quando depôs a favor do amigo em um julgamento por fraude. Ele não encontrou o empresário durante oito anos depois disso, mas o magnata lembrou-se do “incidente do sanduíche” e surgiu uma amizade.

Trump convenceu Witkoff a se formar em Direito Imobiliário, para se tornar um empreiteiro. Os dois se deslocavam entre Nova York e a Flórida, em meio a muitas partidas de golfe. Witkoff estava com Trump no clube de golfe deste em West Palm Beach, em setembro, quando um homem, possivelmente um assassino, foi preso com um fuzil. Também se emocionou ao conversar com Trump sobre seu sofrimento quando um de seus filhos, Andrew, morreu de overdose de narcótico em 2011.

Vantagem. O amigo de Trump entrou na negociação na Ucrânia. A Rússia conta com a simpatia da Casa Branca – Imagem: Bulent Kilic/AFP

Sua longa história gerou uma profunda lealdade pessoal em Witkoff, e em troca ele é tratado quase como alguém da família pelo presidente. É uma amizade que antecede à opção de Trump pelo nacionalismo cristão e a extrema-direita, por isso Witkoff não leva a mesma bagagem ideológica em sua diplomacia, como outros fiéis. Sua lealdade é para Trump pessoalmente, não ao MAGA. Seus modos geralmente amáveis e educados também se destacam na turma de Trump. Don Peebles, outro empreiteiro que conhece bem os dois, disse ao ­Journal que Witkoff “não é o tipo de negociador que quer ver sangue no chão antes de fechar o negócio”.

Depois da campanha para as eleições primárias no ano passado, Trump enviou Witkoff para fazer as pazes com seus adversários republicanos derrotados. E o advogado trabalhou no cessar-fogo de Gaza com seu homólogo no governo democrata, Brett McGurk, durante a transição, em um raro exemplo de cooperação bipartidária. “Brett McGurk foi ótimo para Biden”, ele lembrou. “Trabalhamos de modo colaborativo. Conseguimos convencer as pessoas de que a libertação de reféns era uma boa coisa.”

Ele dá crédito ao genro de Trump, Jared Kushner, por convencê-lo a assumir o papel de enviado ao Oriente Médio, trabalho que Kushner desempenhou informalmente no primeiro governo Trump. Kushner, outro empreiteiro, pediu o cargo com base em suas conexões de negócios com as monarquias do Golfo Pérsico, mas Witkoff, personalidade muito mais calorosa que seu antecessor, ligeiramente robótico, também desenvolveu relações mais embaixo na escala social, particularmente com as famílias dos reféns. “Tenho muita empatia porque eu perdi um filho”, disse. “Por isso eu falo com essas famílias que perderam seus filhos e elas querem seus corpos de volta, do mesmo modo que as famílias dos que estão vivos.”

A segunda fase do cessar-fogo em Gaza será o grande teste

O foco de Witkoff nos 58 reféns restantes, dos quais as autoridades israelenses acreditam que 34 estejam mortos, o alinha com a maior parte da opinião pública israelense ao buscar acordo na segunda fase do cessar-fogo, mas em rota de colisão com Netanyahu e a extrema-direita.

A próxima fase envolverá a libertação de muitos outros palestinos que cumprem prisão perpétua em Israel e a completa retirada israelense da Faixa de Gaza. Seria um passo importante na direção de uma paz duradoura, por isso Netanyahu é contra. A ala direita de sua coalizão, que se opôs ao cessar-fogo desde o início, ameaça sair do acordo se ele avançar para uma segunda fase sem que o Hamas seja obliterado primeiro, e a faixa aberta a assentamentos judeus.

Witkoff insistiu publicamente que a segunda fase deve ser iniciada, com prioridade à libertação em segurança dos últimos reféns acima de tudo. “Acho que a fase 2 é mais difícil”, afirmou em uma conferência em Miami na quinta-feira 20. Mas acrescentou: “Todo mundo está aceitando a ideia de que libertar reféns é simplesmente uma boa coisa. É simplesmente algo que é importante e tinha de acontecer”.

O sonho acabou. Zelensky acreditou ser um herói do Ocidente e exagerou na atuação – Imagem: Presidência da Ucrânia

Na conferência, organizada por um instituto beneficente baseado em Riad, Witkoff disse que foi seu contato com a nobreza saudita que o envolveu nas negociações russas. Os sauditas, disse, “engendraram” a libertação de um prisioneiro norte-americano detido por Moscou, por meio de seus contatos com ­Kirill Dmitriev, chefe do fundo patrimonial soberano da Rússia. “Eles acharam que poderia haver uma reunião persuasiva na Rússia capaz de levar à libertação de Marc Fogel”, descreveu. “Descemos do avião sem ter certeza de que isso iria acontecer, mas aconteceu.”

A libertação de Fogel em 1° de fevereiro deu a Trump uma primeira vitória de relações públicas e foi um presente convincente de Vladimir Putin para garantir um telefonema com o novo presidente estadunidense no mesmo dia em que começaram as conversas entre Rússia e EUA sobre a Ucrânia, na ausência de representação ucraniana. O papel de ­Witkoff consolidou sua posição na mente do republicano como alguém que consegue resultados, levando à sua atual posição como mestre quebrador de galhos dos Estados Unidos. A paz duradoura na Ucrânia e no Oriente Médio vai, no entanto, girar em última instância em torno de questões de justiça e soberania nacional, termos que Witkoff evita. Quando ele foi ver pessoalmente a devastação em Gaza, no fim de janeiro, disse que não conseguia imaginar por que algum palestino desejaria ficar ali. As próximas semanas poderão não somente testar sua posição como emissário de Trump, mas também os limites da abordagem imobiliária da diplomacia. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1351 de CartaCapital, em 05 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O corretor de Trump’

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Last Update: 26/02/2025