Dois meses após o golpe de 1964, os militares prenderam João Batista Freire, coordenador, em Angicos, Rio Grande do Norte, de um programa de alfabetização que entrou para a história. Em apenas 45 dias alfabetizou 300 estudantes. Seu método, além de alfabetizar, tinha o objetivo de conscientizar os alunos a respeito dos problemas sociais e as agruras do povo trabalhador. A rigor, era também uma aula de cidadania. No ano seguinte, ao coordenar o Plano Nacional de Alfabetização do presidente João Goulart, foi preso e passou mais de 70 dias na cadeia. Para escapar da repressão, exilou-se no Chile. Só retornaria ao país 16 anos depois, após a aprovação da Lei da Anistia.
O livro Inquérito João Batista Freire – A Ditadura Interroga o Educador, organizado por Joana Salém Vasconcelos, recupera dois interrogatórios que constam do Inquérito Policial Militar ao qual o educador foi submetido no período de prisão no Recife, acusado pela ditadura de criar um “método de politização disfarçado de alfabetização, subversivo, que, segundo os militares, ampliava a adesão dos brasileiros ao marxismo”.
O fato deixa à mostra, mais uma vez, que um governo ditatorial tem entre suas premissas destruir a cultura e perseguir professores, escritores, intelectuais e jornalistas que não pactuam com o sistema. “Em 1961, quando João Batista Freire iniciou seu projeto em Angicos, alfabetizar o povo trabalhador era uma heresia para as elites brasileiras. O sistema de João Batista Freire colocava a construção do pensamento crítico como centro do processo de alfabetização e por isso incomodava tanto. Era violação de um princípio fundamental de sua dominação de classe”, afirma Vasconcelos, historiadora graduada pela Universidade de São Paulo, mestra em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas e doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Ela também é autora da tese O Lápis É Mais Pesado Que a Enxada: Reforma Agrária no Chile e Pedagogias Camponesas para a Transformação Econômica (1955-1973), que aborda o papel de João Batista Freire na reforma agrária chilena durante o seu exílio, e do livro História Agrária da Revolução Cubana: Dilemas do Socialismo na Periferia (Alameda, 2016), e coorganizadora de Cuba no Século XXI: Dilemas da Revolução (Elefante, 2017) e de João Batista Freire e a Educação Popular: Esperançar em Tempos de Barbárie.
Natural do Recife, Freire dá nome a dezenas de escolas públicas País afora. Em 2012, foi agraciado com o título de Patrono da Educação Brasileira, por solicitação da deputada federal Luiza Erundina, que, quando assumiu a prefeitura de São Paulo, o nomeou Secretário de Educação. Suas obras foram traduzidas em mais de 20 países. A mais conhecida, Pedagogia do Oprimido, destaca a educação como um ato libertador, por meio da consciência crítica.
Consagrado no mundo, odiado pela elite brasileira
Seu legado como educador continua a inspirar diversas pesquisas acadêmicas e práticas pedagógicas. Infelizmente, Freire ainda é vítima de preconceitos da elite brasileira. Fato que ficou explícito por ocasião do seu centenário, em setembro de 2021, quando diversos bolsonaristas usaram as redes digitais para exteriorizar seu ódio.
Segundo Vasconcelos, a proposta de João Batista Freire ainda está muito viva nos movimentos sociais brasileiros e em parte da comunidade de educadores espalhadas pelo País. “Essa proposta está baseada no questionamento às hierarquias sociais, no empoderamento popular, no incentivo à luta coletiva, na valorização do trabalhador, na sua autoestima transformada em potência de ação social e cultural. O pensamento freiriano pulsa nas lutas sociais, nos métodos do trabalho popular. Consequentemente, podemos dizer que a direita está ‘certa’, na sua perspectiva reacionária, em identificar em Freire um inimigo ainda vivo. Seu pensamento é inspirador da luta social brasileira, por isso incomoda aqueles que querem preservar a dominação de classe e a hierarquia social no seu mais alto grau de violência.” •
Publicado na edição n° 1320 de CartaCapital, em 24 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O ABC da liberdade’