
O circo de horrores e a pedagogia jurídica
por Fábio de Oliveira Ribeiro
Não é possível comparar o julgamento da quadrilha golpista do seu Jair com os julgamentos do Mensalão ou com a Lava Jato.
O Mensalão foi, em grande medida uma novela midiática jurídica com um desfecho lamentável. Um Laudo Pericial que beneficiava os réus foi escondido para não ser utilizado pelos advogados de defesa. A teoria do domínio do fato foi deformada para se ajustar à vontade do Ministro Joaquim Barbosa de condenar José Dirceu e José Genoino.
O princípio da presunção de inocência foi transformado em princípio da culpa presumida por Luis Fux, Ministro que condenou José Dirceu porque ele não provou sua inocência. Rosa Weber condenou o próprio José Dirceu com base na literatura. Durante o julgamento, Marco Aurélio de Mello chegou a dizer que a Suprema Corte deveria se curvar ao clamor da opinião pública. A pressão da imprensa sobre o Ministro Ricardo Lewandowski foi vergonhosa.
Na época, critiquei os advogados dos réus. Eles fizeram defesas baseadas exclusivamente na doutrina, na jurisprudência e na dogmática jurídica, defesas extremamente técnicas, sem dúvida, mas que se mostraram inúteis num contexto de extrema politização do STF. Os advogados dos réus do Mensalão poderiam ter utilizado a técnica da ruptura de Jacques Vergès (1925 – 2013). Essa técnica defensiva, que preconiza a deslegitimação do órgão julgador em virtude de sua predisposição histórica e/ou ideológica de condenar o acusado independentemente do que foi provado nos autos e do que consta da legislação penal e processual penal, talvez fosse mais adequada ao caso do Mensalão.
A Lava Jato foi um caso de Lawfare clássico. A dupla Deltan Dellagnol e Sérgio Moro utilizaram prisões cautelares para torturar suspeitos a fim de forçá-los a fazer delações premiadas que levassem à realização de novas prisões e delações igualmente maculadas pela coação. Ambos combinavam através do Telegram ações decisões que seriam tomadas nos processos, mas os advogados dos réus não tinham acesso a essa camada secreta dos processos.
Sérgio Moro agia como juiz e como editor jornalístico da operação, vazando informações e combinando prisões com jornalistas “engajados” no falso moralismo judiciário. Deltan obteve lucro dando palestras com informações privilegiadas. Ambos fizeram acordos nos EUA usurpando o poder/dever outorgado ao Itamaraty e ao Ministério da Justiça.
Ao condenar réus, Sérgio Moro não apenas legitimava delações obtidas mediante chantagem, pagamento e prisões cautelares indevidas. Ele considerava as declarações dos réus como prova dos crimes cometidos pelas pessoas que foram delatadas. Quando o Código Penal impossibilitava a condenação, aquele juiz simplesmente adequada o tipo penal à sua ideologia punitivista.
No caso do Triplex, Sérgio Moro era suspeito e incompetente, mas preferiu condenar Lula com base na acusação jornalística feita contra o réu e rejeitando evidências de que o imóvel pertencia a um terceiro que o havia dado em garantia por uma dívida bancária. A Lei exigia que o acusado tivesse praticado atos específicos para beneficiar alguém em face da administração pública, mas Sérgio Moro entendeu que “atos inespecíficos” teriam sido praticados por Lula e bastavam para sua condenação.
Em certo momento, Sérgio Moro se tornou o juiz mais importante do Brasil. Ele tinha “carta branca” do TRF-4 para julgar e condenar quem ele quisesse e para convencer Deltan Dellagnol a não denunciar pessoas que ele considerava aliadas da Lava Jato. O STJ também se curvou ao poder midiático da 13a Vara Federal de Curitiba, bem como uma parte do STF. Juízes da Suprema Corte que não concordassem com tudo que a dupla dinâmica lavajatista decidisse eram discretamente ameaçados.
A Lava Jato começou a desmoronar quando a ganância por lucro e por poder dos heróis/vilões lavajatistas se tornou evidente demais. Com o intuito de criar uma fundação privada que pretendiam administrar, eles tentaram se apropriar de bilhões de reais de uma multa que deveria ser revertida ao Orçamento da União. Essa jogada escandalosa foi interrompida pelo Ministro Alexandre de Moraes. No final, as irregularidades da Lava Jato foram tantas e tão graves que as condenações estão sendo quase todas anuladas.
O caso envolvendo seu Jair e sua quadrilha de generais e coronéis é muito diferente. Eles não são vítimas de Lawfare, mas criminosos comuns que produziram uma imensa profusão de provas incriminadoras ao longo de todo o período em que planejaram e colocaram em execução o golpe de estado que explodiu com violência nas ruas de Brasília em 08 de janeiro de 2023. O Laudo da Polícia Federal e a denúncia ofertada pelo PGR não são baseadas em Fake News,e vidências forjadas ou convicções políticas, mas em mensagens, documentos, vídeos, entrevistas, etc… que corroboram inteiramente a delação premiada de Mauro Cid.
A autoria, materialidade do delito e dolo específico do crime imputado ao seu Jair e aos parceiros golpistas dele não são apenas inegáveis. Elas foram de certa maneira confirmadas pelas declaração de alguns dos réus e pelos advogados deles ao dizer que tentaram “demover o ex-presidente” de seguir adiante com o plano de destruir o regime democrático.
Ao contrário dos advogados dos réus do Mensalão, os advogados da quadrilha golpista do seu Jair utilizaram ou tentaram (sem muito sucesso e eloquência) utilizar a técnica da ruptura de Jacques Vergès. Um deles chegou a dizer que os Ministros da Suprema Corte são odiados e acabou sendo humilhado pela sempre tranquila Ministra Carmem Lúcia. Comparações entre a ação penal n º 2.668 e o Mensalão, Lava Jato e caso Dreyfus foram feitas durante as alegações finais dos advogados dos réus do golpe de estado.
Essas comparações são todas abusivas, grotescamente exageradas. A maioria dos parceiros de seu Jair estão em liberdade. Eles não foram coagidos com prisões cautelares para fazer delações premiadas à moda da Lava Jato. Ao contrário do que ocorreu no Mensalão, os advogados que atuam na ação penal n º 2.668 tiveram acesso às provas e nenhum documento foi escondido deles. A alegação de que eles não tiveram tempo para analisar toda a documentação é risível, um caso típico de ostentação vergonhosa da própria falta de zelo profissional.
Alfred Dreyfus não tentou derrubar Sadi Carnot em 1894 ou impedir Félix François Faure de assumir a presidência da França em 1895, tampouco conspirou para assassinar membros da Suprema Corte francesa. Bolsonaro não está sendo perseguido por causa de sua religião, mas porque liderou um bando de militares autoritários comprometidos com a restauração da ditadura militar de 1964.
Durante o Mensalão e durante boa parte da Lava Jato, os protagonistas do circo de horrores foram os membros do Judiciário. Eles substituíram as Leis por suas convicções ideológicas e agiram como justiceiros políticos e não como juízes imparciais. Confrontados por advogados que recorriam à doutrina, à jurisprudência e à dogmática jurídica os juízes encarregados de julgar os réus naqueles dois casos se fizeram de surdos e proferiram condenações injustas que fragilizaram tanto o Direito quanto a democracia brasileira.
O voluntarismo punitivista (aplaudido pela imprensa durante o Mensalão e a Lava Jato) não está ocorrendo na ação penal n º 2.668. Quem protagoniza o circo de horrores agora são os defensores dos réus que fizeram comparações abusivas e acusaram os Ministros do STF de agir de maneira ditatorial. Os advogados do seu Jair e dos membros da quadrilha dele nem mesmo foram capazes de repelir com a devida ênfase as tentativas de Donald Trump de interferir no julgamento. Isso é lamentável, porque a advocacia só pode ser exercida com liberdade, dignidade e altivez diante de Tribunais que não sofrem coações ou pressões políticas irresistíveis internas e externas.
Os erros grotescos cometidos pelos Ministros do STF durante o Mensalão e do STJ e do TRF-4 durante a Lava Jato levaram ao circo de horrores das sustentações orais dos advogados do seu Jair e da quadrilha golpista? O rigor técnico-jurídico inútil dos advogados de José Dirceu, José Genoino e demais réus durante o julgamento do Mensalão engendraram os acertos do STF na condução da ação penal n º 2.668? Essas são questões que os professores de Direito podem e devem agora debater com seus alunos, porque existe um farto material em vídeo que poderá ser visto e comentado, revisto e interpretado, pelos estudiosos e estudantes de Direito.
O circo de horrores chegou ao fim? Melhor não responder essa pergunta, porque me parece evidente que o Judiciário continuará sendo pressionada pelo campo jornalístico e atacado pela extrema direita do campo político.
Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.
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