Uma região canavieira da Paraíba e Pernambuco em período de transição do engenho para a usina encontrou no ‘ciclo da cana-de-açúcar’ de João Pedro a sua mais alta expressão literária.
Descendente de senhores de engenho, o romancista soube fundir numa linguagem de forte e poética oralidade as recordações da infância e da adolescência com o registro intenso da vida nordestina colhida por dentro, através dos processos mentais de homens e mulheres que representam a gama étnica e social da região.
João Pedro Cavalcanti (1901/1957) nasceu no Engenho Corredor numa cidade do interior da Paraíba chamada Pilar.
Fez os estudos secundários em Itabaiana e na Paraíba (atual João Pessoa).
Aos quatorze anos, muda-se para o Recife, concluindo o secundário no Ginásio Pernambucano, prestigioso colégio nordestino, por onde passaram Ariano Suassuna e Clarice Lispector.
Na sequência, em 1919, matricula-se na Faculdade de Direito do Recife, onde conhece e se relaciona com o escritor José Américo de Almeida, um pioneiro daquilo que ficou conhecido como a literatura modernista regionalista, da qual fizeram parte Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz.
Durante a Faculdade de Direito, o nosso escritor conhece Gilberto Freire, de quem receberia o estímulo para se dedicar à arte voltada para as raízes locais. Não seria exagero dizer, nesse sentido, que os romances de João Pedro fossem uma expressão literária daquela civilização do açúcar tão bem descrita por Freire no seu ‘Casa Grande e Senzala.’ (1933).
Também não seria incorreto dizer que João Pedro tenha sido ao mesmo tempo um romancista e um memorialista. A leitura dos livros que compõe o seu ‘Ciclo da Cana de Açúcar’ retrata diretamente experiências da vida do escritor.
Desde a sua infância no Engenho de Açúcar do Avô, situado no interior da Paraíba; na sua adolescência, quando é matriculado num colégio de freiras longe dos domínios da Fazenda Santa Rosa; e o seu retorno, já formado em Direito, à casa do avô. Cada um desses períodos da vida de João Pedro são retratados pela literatura memorialista através do personagem Carlos.
A partir de sua infância em ‘Menino de Engenho’ (1932); passando pela adolescência com ‘Doidinho’ (1933); e a chegada da vida adulta através de ‘Banguê’ (1934).
Daí a importância particular de se conhecer a trajetória da vida de João Pedro, que é indicativa de boa parte das suas obras. São histórias que retratam o período de decadência econômica e civilizatória dos senhores de engenho, cujos domínios são paulatinamente degradados em função do desenvolvimento produtivo instaurado pelas Usinas.
Antigos potentados e grandes senhores de engenho se vêm reduzidos à pobreza por dívidas contraídas junto aos usineiros, cujas fábricas têm uma produtividade incomparável com as antigas técnicas de produção de açúcar herdadas do período colonial.
Os usineiros se organizam em sociedades empresariais, emprestam dinheiro aos proprietários de terra com juros usurários e endividam até as famílias mais ricas, que se vêm compelida a entregar as suas terras aos seus credores. A concentração ainda maior de terras é reflexo daquela mudança de horizontes. É justamente este momento em que a grandeza dos engenhos de açúcar já pertencia irremediavelmente ao passado que é objeto de descrição dos livros de João Pedro.
Efetivamente, o escritor presenciou em vida um mundo prestes a desabar: e a decadência da tradicional civilização do açúcar, cujas origens remetem aos primórdios do período colonial, é incorporada à visão de mundo do escritor e do personagem que o representa nos romances. Depois de quase três séculos de predomínio econômico no Brasil, a economia do açúcar decai de forma vertiginosa já em meados do século XIX, sendo substituído pelo café produzido no vale do Paraíba e no interior de São Paulo.
A decadência é algo que também aparece nitidamente em algumas histórias de Graciliano Ramos, escritor que mantinha vínculo de amizade com João Pedro. Há um evidente paralelo entre o velho senhor de engenho José Paulino do engenho de Santa Rosa (João Pedro) e Paulo Honório de São Bernardo (Ramos): o primeiro retratado por João Pedro de forma mais lírica e poética e o segundo retratado por Graciliano Ramos de forma mais árida e distante (não necessariamente marcada pela memória afetiva, como no caso do autor de ‘Fogo Morto’).
Usina
Usina é o quarto e último livro do ciclo da cana-de-açúcar. Foi publicado no ano de 1936 e dedicado ao mencionado Graciliano Ramos e ao editor José Olympio. Ambos plenamente relacionados àquele conjunto de escritores da chamada geração modernista de 1930, cujas histórias descrevem questões existenciais e atemporais aclimatadas na região nordestina.
O livro dá continuidade à história da Fazenda Santa Rosa que passa à direção de Dr. Juca, filho do velho senhor de engenho José Paulino e tio de Carlos Melo, o bacharel que fracassara no seu intento de presidir os trabalhos.
Neste volume vê-se a consolidação de um movimento histórico já sinalizado em ‘Banguê’: a decadência do engenho de açúcar e do mundo patriarcal a ele vinculado e a constituição da ‘Usina’, construída pelo Dr. Juca e que enseja um novo ritmo de trabalho ditado pelas máquinas.
Na usina a terra é tomada meramente como capital ao passo que no engenho a terra é um bem simbólico imobilizado por grupos familiares por gerações.
A nova organização do trabalho dá-se em bases capitalistas, substituindo o anterior modo de produção que alguns estudiosos da história do Brasil caracterizaram como feudalismo. Sai de cena o Senhor de Engenho que preside os trabalhos, administra a jurisdição, impõe castigos, concede o perdão e dá a benção. Entra em cena o Capitalista, o dirigente impessoal e frio como suas máquinas, que descarta famílias que lá viviam por gerações como meras peças sem serventia de uma gigante engrenagem.
A reestruturação produtiva envolve a conversão dos roçados de alimentos dos trabalhadores em vastas extensões de plantação de cana. Tudo o que era terra agricultável, nos tempos da usina, deve ser aproveitado exclusivamente para o plantio de cana. Há mesmo o desvio dos rios onde os camponeses pobres irrigavam sua agricultura de subsistência para incrementar a produção industrial do açúcar. Antes o pobre tinha água para beber e agora passa fome e sede na caatinga. E é mesmo comum o sentimento de nostalgia dos tempos de José Paulino, especialmente dentre os trabalhadores do eito. Um desejo de retorno a um mundo perdido para sempre.
A remuneração passa a ser feita por meio de vales que são trocados por alimentos junto a um barracão controlado pelo usineiro, num regime de servidão por dívidas que mantém situação de exploração em certos aspectos ainda pior do que o dos tempos da escravidão.
Num primeiro momento, Dr. Juca alcança um grande êxito comercial ao transformar o banguê de seu avô José Paulino na Usina Bom Jesus. Nessa bonança, o capitalista leva uma vida de pouca sobriedade e moderação nos seus gastos, direcionados a futilidades. Frequenta uma casa de prostitutas em Recife onde se relaciona com mulher com quem gasta uma fortuna com presentes e viagens. Adquire veículos de luxo e gasta muito contos de réis só com gasolina.
Ambicioso, Dr. Juca toma uma iniciativa arriscada: aceita hipotecar suas terras em troca de empréstimo para aquisição de máquinas e tecnologia para a expansão da produção. Para tanto, faz negócio com um americano que promete ter colhido bons frutos com a restruturação tecnológica em plantações de açúcar de Cuba.
Os planos de Dr. Juca fracassam, as máquinas não funcionam como o esperado, torna-se necessário contratar especialistas mediante caríssima remuneração sem qualquer resultado.
Situação que se agrava e leva à queda da Usina após a crise dos preços do açúcar.
Na história, a Usina figura como um ser vivo, com vida própria e que vai desmantelando todo um mundo constituído através da tradição. Esse ser vivo encontra paralelo com a história de seu dono, o Dr. Juca. Ambos passam por um processo rápido (cerca de três anos) de ascensão e queda abrupta. No caso da Usina Bom Jesus, o seu abandono após o endividamento e a queda dos preços no mercado. E o Dr. Juca após uma doença e a frustração pessoal decorrente do fracasso do seu empreendimento. Usina e Dr. Juca caminham paralelamente do ápice à queda, gradativamente decaem em direção a uma morte lenta e dolorosa.
Ao mesmo tempo, a Usina se impõe como uma força natural parecida com uma grande tempestade, que destrói casas, igrejas, roçados e rios para impor a monocultura industrial do açúcar.
Bibliografia
‘Banguê’ – João Pedro – Ed. Global
‘Usina’ – João Pedro – Ed. Global