O cerco ao STF

por Márcio Chaer

A campanha internacional dos gigantes mundiais da tecnologia, as big techs, contra o Supremo Tribunal Federal do Brasil tem um encontro marcado com o seu principal alvo e objetivo no dia 4 de junho — quarta-feira da semana que vem. O presidente do Tribunal, Luís Roberto Barroso, marcou para esse dia o julgamento da regulação das chamadas “big techs”.

De um lado, os onze ministros do STF, que tendem a fixar limites para evitar práticas predatórias de grandes plataformas digitais ao limitar ou encarecer o acesso de consumidores a produtos e empresas.

De outro, unem-se as forças que querem defender seus interesses financeiros — já que o produto mais procurado nas redes são notícias falsas — e a ala que usa a fábrica de mentiras para eleger ou derrubar governos. A imprensa tradicional brasileira entra na linha auxiliar, produzindo notícias diárias para enxovalhar e desacreditar o Judiciário.

Catarse coletiva

Essa revanche passou a ser urdida depois da fracassada intentona de 8 de janeiro de 2023. Ganhou tração ao ganhar um para-choques poderoso — o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump — com um argumento de fachada: a liberdade de expressão. “Usar esse direito fundamental para ‘justificar’ crimes serve de precedente para homicidas ou traficantes irem na mesma linha”, opina o constitucionalista Georges Abboud.

A ousadia americana remete a outras aventuras do passado, como a Guerra do Vietnã e a invasão do Iraque — duas missões empreitadas sob falsos pretextos, como as inexistentes “armas de destruição em massa” de Sadam Hussein. As milhões de mortes causadas foram tão abomináveis quanto o ataque às Torres Gêmeas e ao Pentágono, onde milhares de vidas foram perdidas.

“Nós somos os Estados Unidos da Amnésia”, disse o escritor e ativista político americano, Gore Vidal. “Não aprendemos nada com a história”. A frase emblemática é resgatada na série “Ponto de Virada”, da Netflix, na temporada sobre a Guerra do Vietnã, que narra os repetidos erros de governantes dos Estados Unidos, estribados na sua arrogância e prepotência. O uso do poder bruto para atender interesses mesquinhos na chantagem praticada contra o STF lembra momentos infelizes como as chacinas na Ásia e no Oriente Médio.

Follow the money

O conto do vigário apelidado de Lei Magnitsky, não é a primeira arapuca criada para enfiar a mão no bolso de pessoas e empresas de outros países. Sempre com pretextos da maior nobreza, como combate à corrupção ou ao crime organizado, o que se faz é desmontar a concorrência e arrecadar altos valores.

Foi o que se viu na sinergia que os Estados Unidos criaram com a força tarefa de Curitiba, no esquema lava jato. Ao mesmo tempo em que se desmontou o parque de empreiteiras que fazia concorrência com empresas americanas, levantou-se algo como 6 bilhões de dólares para os cofres americanos. Admita-se que defender os interesses do país é legítimo. Fora do esquadro é nativos cooperarem com a espoliação do próprio país.

A imprensa brasileira tradicional também trabalha com a metáfora da “liberdade de expressão”. Principalmente jornalistas que têm por meio de vida a prática de chantagear e extorquir suas vítimas — fuziladas até que recebam resgate pela honra sequestrada. O pior: com a complacência dos colegas, que evitam noticiar esses negócios escusos.

Imprensa monocromática

Na expressão do ministro do STF André Mendonça, uma boa herança deixada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, “a imprensa brasileira é monocromática”. Diferentemente do jornalismo americano, que explora as nuances e complexidades da natureza humana, aqui o mundo se divide em mocinhos e bandidos.

Nem sempre as campanhas, que se deflagram no lugar de notícias, dão certo. O apoio alucinado ao golpe de 1964 e ao esquema “lava jato”; a tentativa de barrar as eleições de Maluf, Collor e Bolsonaro não são lembranças felizes. Ninguém acerta sempre.

Mas do processo de desmoralização dos ministros os resultados não poderiam ser mais eficientes. Os principais jornais e emissoras escalaram colunistas para fuzilamento diário da magistratura em geral, mas dos ministros, em especial.

Causaram uma vulnerabilidade que os expôs na pessoa física e jurídica — brecha que o abominável Donald Trump está usando no seu papel de bufão. A notícia de que sicários chegaram a ser contratados para matar ministros é prova disso.

Lorotas a granel

A hipocrisia não tem limites. Os mesmos jornais que promovem eventos no exterior enxovalham os que são promovidos por outrem. Um jornalista que fatura seu merecido dinheiro por participar de seminário no exterior, para brasileiros, ao referir-se a fórum não promovido por seu jornal insinua desvio de conduta quando ministros — que, de fato, têm conteúdo — são palestrantes.

Aplica-se consigo próprio os critérios que usam para julgar os outros, esses jornais e jornalistas se veriam em maus lençóis.

Para Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional na PUC-SP e sócio do Warde Advogados, “há uma impressão das pessoas que são bolsonaristas, de que elas estão conseguindo mobilizar o governo norte-americano. Mas na realidade, são as big techs que estão fazendo isso, enfrentando não só o Judiciário brasileiro, mas o próprio Legislativo na sua competência de regular no Brasil suas atividades”.

E não é só no Brasil, continua o professor, “elas estão usando o poder dos Estados Unidos para enfrentar na Europa, aqui, em todos os lugares, a regulação das suas atividades. As big techs não querem se submeter aos Estados, e sim, ser uma nova forma de Estado, de poder político”.

Governo planetário

É algo grave para a democracia no mundo, afirma Serrano. “É importante haver liberdade de imprensa, liberdade de manifestação. Mas as instituições privadas devem se submeter aos Estados e à democracia. Senão, o que passa a haver é um império absolutista privado, o que não é bom”.

“Quem deve regular a liberdade de expressão e seus limites”, continua, “é o Estado e o Judiciário democraticamente, por meio da Constituição e das leis aprovadas pela maioria; e não empresas privadas querendo ser os controllers da liberdade de expressão. Isto é muito grave e o STF precisa ser defendido agora desse ataque que está sofrendo das big techs, que têm se utilizado do governo americano. Mas quero ressaltar que esse problema não é só no Brasil, é o problema da cidadania no mundo.”

Contraponto

O pensamento hegemônico implantado, contudo, é o de que o STF foi quem pediu o seu fuzilamento. Luiz Friggi, advogado, é sócio da área cível e de resolução de conflitos do escritório Simões Pires pensa diferente: “O chamado “cerco” ao STF é baseado na aplicação de lei interna (dos EUA) criada para a “proteção” cidadãos e empresas daquele país contra arbitrariedades (no conceito jurídico aplicável aos EUA) advindas de autoridades estrangeiras”.

No ano passado, lembra ele “o STF, de certo modo, suprimiu o direito de defesa e o devido processo legal para punir o X e a Starlink no Brasil, bem como o empresário Elon Musk, diante das restrições de funcionamento e das multas aplicadas pelo próprio STF”.

Na sua visão “isso foi interpretado nos EUA como restrição à liberdade de expressão — sendo que o espectro de proteção dessa liberdade tem se distanciado muito entre os dois países”.

“Ao proferir decisões que interpretaram a liberdade de expressão de modo bem particular, alcançaram pessoas e empresas norte-americanas. Violou-se o devido processo legal e a ampla defesa. O STF criou o espaço necessário para a aplicação da lei em questão. Os EUA estão exercendo sua soberania. Se efetivamente irão colocar em prática, ou não, parece mais uma questão de diplomacia do que de direito internacional”.

E conclui Friggi, “o fato é que nada do que os americanos pretendem terá efeito em solo brasileiro, mas, é evidente, aplicar sanções restritivas para qualquer pessoa (e talvez também para seus familiares) em relação ao país mais rico do mundo certamente traz desconforto e mina a imagem do Poder Judiciário. Porém, repita-se, quem criou o ambiente propício para isso foi o próprio STF”.

Márcio Chaer é diretor da revista Consultor Jurídico e assessor de imprensa.

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Last Update: 30/05/2025