O Senado Federal apresenta resistências para votar, com o mesmo ímpeto e o mesmo conteúdo, o projeto de lei gestado na Câmara dos Deputados para reduzir as penas de Jair Bolsonaro e dos golpistas de 8 de janeiro de 2023 O cenário que se desenha, até o momento, é de uma mudança no texto do projeto para evitar que a “anistia envergonhada aos golpistas” _ como classificaram os parlamentares do PT no ato do dia 14 _ possa beneficiar também outros condenados, permitindo que deixem o sistema prisional.
Mas a pergunta fundamental que se deve fazer sobre o conteúdo do projeto, na visão do advogado criminalista e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Davi Tangerino, é se tal casuísmo, em se tratando de uma tentativa de golpe de Estado, vale a pena num momento tão delicado para a democracia brasileira e global. “Acho que a gente deveria fazer uma pergunta mais aberta: vale a pena criarmos uma exceção justamente para um crime tão grave como golpe de Estado? Vale a pena esse casuísmo, de termos crimes violentos mesmo e crimes mais ou menos violentos, com progressões diferentes?”, questiona o criminalista.
Risco: debate pode voltar em 2026 ou 2027
Tangerino diz estar “amplamente convencido de que o projeto é inconstitucional”. E alerta, ainda, sobre os riscos futuros de se aprovar esse precedente para quem atenta contra a democracia, caso exista um entendimento político majoritário tanto no Congresso quanto no Supremo. “Pode ser que por uma questão política entre os Poderes– na esperança, na minha opinião inocente, de que isso enterrará a conversa de anistia –, o Supremo feche os olhos e aplique [a dosimetria para os envolvidos no 8 de janeiro]”, explica. Na opinião do advogado, aprovar a dosimetria agora não significa extinguir riscos futuros de reabertura da conversa sobre anistia logo no início de 2026, sobretudo se houver fortalecimento da bancada da extrema direita. “O que eu espero que não aconteça”, salienta.
Além do casuísmo e do risco político, ele pontua que há, sim, possibilidade de a benesse que a Câmara articulou para “Bolsonaro e a turma golpista” conceder também a condenados por crimes graves o direito a uma progressão diferente de regime, podendo deixar a cadeia antes do tempo previsto. “Embora esses casos não sejam estatisticamente relevantes” no conjunto do sistema prisional, explica. Cerca de 85% dos detentos do Brasil foram presos por roubo, furto qualificado ou tráfico de drogas, diz. Outros 10%, aproximadamente, seriam condenados por homicídios e crime sexual violento, crimes hediondos. Para esses crimes não haveria progressão de pena.
“A minha objeção a essa mudança [na Lei de Execução Penal] é menos de natureza estatística. Eu não gosto desta linha de pensamento do pânico, de dizer nossa, um monte de gente vai ser solta. Número 1: não é verdade. Número 2: no final do dia, acho que isso é o menos importante”, analisa o professor da UERJ.
Anistia branda e disfarçada
Para Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o projeto veste um arremedo de anistia branda e disfarçada. “O PL combina dois vícios graves: de um lado, o desvio de finalidade legislativa, ao produzir uma norma dirigida a beneficiar destinatários certos que atentaram contra a democracia brasileira; de outro, a invasão da esfera jurisdicional, ao pretender substituir o juízo técnico dos tribunais por comandos legislativos voltados a reescrever o julgamento do 8 de janeiro”, afirmou.
Na visão do advogado criminalista Bruno Salles, os parlamentares simplesmente criaram uma regra de exceção, específica para os crimes pelos quais foram julgados e os condenados os responsáveis pela trama golpista do 8 de janeiro de 2023.
Salles explica que o PL da Dosimetria gera “uma regra que tende a diminuir substancialmente a pena de acusados”.
O que é dosimetria e o que a Câmara fez
A Câmara dos Deputados criou um projeto, o PL da Dosimetria (regras de cálculo), que altera as regras atuais para calcular as penas de um condenado, previstas no Código Penal e na Lei de Execução Penal.
Atualmente, por exemplo, para mudar do regime fechado para semiaberto um preso precisa cumprir percentuais maiores da pena (como 20% ou 30%, dependendo do crime). O PL propõe que, em certas situações, esse percentual seja menor (como 1/6 da pena ou 16%), o que acelera a progressão e reduz o tempo que o condenado vai permanecer atrás das grades.
“Essa reforma da progressão de regime é um puxadinho para beneficiar um grupo pequeníssimo de pessoas”, alerta Davi Tangerino.
Inconstitucionalidade latente
O PL da Dosimetria unifica os crimes de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L) e Tentativa de Golpe de Estado (art. 359-M), que possuem objetos jurídicos e finalidades distintas. O Supremo Tribunal Federal (STF) somou as penas por entender que os réus cometeram crimes autônomos. Ao proibir essa soma [concurso material] e determinar uma única pena com aumento proporcional, o projeto esvazia a punição aos ataques mais graves à democracia e cria um precedente de impunidade sob o manto da “dosimetria”, argumentam os especialistas.
Para Pedro Serrano, essa contaminação da finalidade transforma o PL da Dosimetria em um ato de abuso de poder legislativo. “A lei é instrumentalizada não para reger a coletividade, mas para intervir no destino jurídico de beneficiários pré-determinados. Trata-se, portanto, de um abuso de poder mediante desvio da própria função legislativa — e, por isso, de uma modalidade grave de violação constitucional”, disse.
Ao flexibilizar as regras de progressão de regime nos casos de condenação por crimes contra o Estado Democrático de Direito, o texto não só diminui o tempo de cadeia para os golpistas como abre uma brecha para a aplicação da nova regra a outros criminosos condenados por delitos não hediondos.
Para a advogadaTânia Oliveira, da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), o projeto altera regime da progressão de pena para alguns crimes contra a dignidade sexual, exceto o estupro, que é crime hediondo. “Porque as penas são atenuadas apenas para os crimes cometidos sem violência ou grave ameaça”, pontuou.
O que mudaria no cumprimento da pena e para quem
Qualquer crime cometido com violência ou grave ameaça tem sua progressão com 25% do cumprimento da pena, explica Bruno Serrano. A proposta do PL da Dosimetria é que apenas os crimes do Título I (Crimes contra a Pessoa) e Título II (Crimes contra o Patrimônio) mantenham essa progressão em 25%, no caso de violência ou grave ameaça. Mas crimes contra a dignidade sexual, previstos no Título VI, mesmo que cometidos sem violência ou grave ameaça, passariam a ter progressão com 1/6 da pena.
Criminosos comuns, incluindo os condenados por corrupção e crimes violentos (não hediondos), também podem ser beneficiados com a progressão mais rápida de regime.
Tapa na cara da sociedade
De acordo com o coordenador do Grupo Prerrogativas, Marco Aurélio de Carvalho, advogado especializado em Direito Público , o projeto é um tapa na cara da sociedade brasileira. “É estarrecedor que a Câmara vire as costas para a população e resolva anistiar criminosos que atentaram contra a democracia e as instituições. É um estímulo para que eles voltem a cometer crimes. A dosimetria cabe apenas e tão somente ao Judiciário”, afirmou.
Caso o Senado aprove um texto distinto do formulado pela Câmara, o projeto voltará para análise dos deputados, o que deve ocorrer apenas em 2026. Se o Congresso beneficiar os golpistas de 8 de janeiro, caberá ao presidente Lula decidir se veta o projeto. O Congresso, ainda assim, poderá derrubar o veto, o que levaria a discussão ao Supremo Tribunal Federal.
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