A psicanalista Maria Rita Kehl – Foto: Reprodução

Por Rodrigo Toniol, no Blog da Boitempo

Na semana passada, a psicanalista Maria Rita Kehl foi alvo de um linchamento virtual, após críticas ao que chamou de “movimento identitário”. A reação à fala dela incluiu um argumento que lembra os piores crimes da humanidade: a ideia de que ela deveria se calar por conta de uma “herança moral” transmitida geneticamente.

Os acusadores se referiam ao fato de o avô de Kehl ter sido um eugenista no início do século 20, sugerindo, portanto, que ela teria herdado, pelos genes, a “paleta moral” dele.

A história nos mostra que, quando biologia e julgamento moral se juntam em um mesmo argumento, o ovo da serpente já foi chocado.

Os ataques tomaram conta de perfis nas redes sociais e ainda estimularam pessoas a editar a biografia de Kehl na Wikipédia, sublinhando sua ‘degenerescência hereditária’ — para usar um termo caro às teorias eugenistas.

A crítica feita pela psicanalista que motivou o ataque virtual foi que o movimento identitarista é um “nicho narcísico”. Segundo ela, na dinâmica deste movimento, apenas quem pertence ao grupo pode falar sobre ele. Eles têm o “lugar de fala”. Para todos os outros, resta apenas o “lugar de cale-se”, conforme Kehl propôs.

Maria Rita Kehl é uma das maiores psicanalistas do Brasil e atuou junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra por décadas. Convidada por Dilma Rousseff, compôs a Comissão Nacional da Verdade, que apurou os crimes contra os direitos humanos durante a ditadura. Na semana passada, porém, sua biografia foi reduzida à “neta do pai da eugenia brasileira”.

É tão comum quanto preocupante que os movimentos identitaristas, associados ao campo progressista, ataquem aqueles que também estão neste campo. Foi assim também com Lilia Schwarcz que, apesar de sua extensa obra sobre racismo e eugenia no Brasil, foi execrada por uma crítica que fez à Beyoncé.

Transformar sistematicamente antigos aliados em inimigos faz com que a autoimplosão seja apenas questão de tempo.

No massacre virtual contra Kehl, subtraiu-se da psicanalista a autoria de sua própria vida. Sua biografia foi ignorada ou então reduzida às suas heranças genéticas.

Ora, a luta antirracista não é exatamente contra a acusação de hereditariedade de comportamentos morais? A lógica de que impurezas morais são transmitidas por laços sanguíneos levou os regimes mais autoritários do século 20 ao extermínio de milhões. Cobrar Kehl pelas atitudes de seu avô perigosamente revive a fórmula da moral biológica essencializante.

Se autorizada, passaremos a cobrar os descendentes de um criminoso pelos crimes de seus pais, tios e avós?

Na mitologia grega, a qual Kehl fez referência, Narciso era um jovem muito belo que fora amaldiçoado pela deusa Nêmesis. Seu castigo foi que nunca se apaixonasse por ninguém além de seu próprio reflexo e sempre desprezasse os outros por não serem tão belos quanto ele.

Esse é o paradoxo do identitarismo, embora tenha surgido como um movimento para tratar da diferença, ele mesmo não consegue lidar com o diferente. Tal e qual Narciso.

É oportuno lembrar que uma das figuras que foi perdidamente apaixonada por Narciso foi a ninfa Eco. Essa ninfa também foi amaldiçoada. No seu caso, a punição que recebeu foi que nunca pudesse iniciar qualquer diálogo e estivesse condenada a sempre dar a última palavra na forma de eco. Tal e qual o movimento identitarista.

Narciso, apaixonado por si mesmo, se afogou ao ver seu reflexo nas águas e tentar agarrá-lo. Eco terminou a vida isolada em uma caverna, sem nunca poder conversar com ninguém.

Assim como Maria Rita Kehl, temo pelo risco que o campo progressista democrático corre ao ser capturado por movimentos que nos levarão para o fundo do rio ou para as profundezas da solidão em uma caverna.

Capa do livro Tempo Esquisito, de Maria Rita Kehl – Foto: Reprodução

 

Tempo esquisito, de Maria Rita Kehl

A coletânea de ensaios traz para o leitor um conjunto de reflexões e análises feitas durante o período da quarentena da covid-19: “Diante de tanta tristeza, escrever foi uma forma de ocupar o espaço do debate público sem romper o isolamento físico. Uma forma de estar com os outros”, conta a autora no prólogo.

Nos textos, além da questão da saúde pública, Kehl aborda temas recorrentes desde 2019 – início do mandato de Jair Bolsonaro na presidência –, como violência policial, desigualdade social e outros.

Há artigos, por exemplo, sobre o linchamento do congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro, em 2021, e também sobre o assassinato de Genivaldo dos Santos, morto pela Polícia Rodoviária Federal, em 2022, em Sergipe. Além, é claro, do olhar sempre voltado à psicanálise, campo principal de atuação da autora.

 

Videologias: ensaios sobre televisão, de Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl

Com pouco mais de 50 anos de existência, é onipresente. É impossível ignorá-la ou pensar o mundo hoje sem considerá-la. É a televisão. O livro de Maria Rita Kehl e Eugênio Bucci, é, desde o trocadilho no título com a célebre obra Mitologias, de Roland Barthes, uma obra que une visão crítica e psicanálise para dissecar as relações entre mitologias, ideologias e televisão.

O tempo e o cão: a atualidade das depressões, de Maria Rita Kehl

Escrito a partir de experiências e reflexões sobre o contato com pacientes depressivos, o livro aborda um tema que, apesar de muito comentado, é pouco compreendido e menos ainda aceito atualmente. Para abordá-lo, Maria Rita faz um apanhado do lugar simbólico ocupado pela melancolia, desde a antiguidade clássica até meados do século XX, quando Freud trouxe esse significante do campo das representações estéticas para o da clínica psicanalítica.

Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade, de Maria Rita Kehl

A obra questiona as relações que se estabelecem entre a mulher, a posição feminina e a feminilidade na clínica psicanalítica. Existe uma diferença irredutível entre homens e mulheres, afinal? Partindo da defesa de uma ‘mínima diferença’, um modo de ser e de desejar através do qual homens e mulheres assumem papéis distintos na sociedade, a autora investiga o campo a partir do qual as mulheres se constituem como sujeitos, de modo a contribuir para ampliá-lo.

Bovarismo brasileiro, de Maria Rita Kehl

Conjunto de ensaios marcantes sobre temas que abarcam desde a literatura de Machado de Assis até um estudo de caso, passando por reflexões acerca das origens do samba, do manguebeat, do período de expansão da rede Globo e da primeira campanha de Lula.

Para dar liga às suas análises, a autora vale-se do conceito de bovarismo, cunhado pelo filósofo e psicólogo Jules de Gaultier com base na personagem Emma Bovary, de Gustave Flaubert, uma ambiciosa e sonhadora pequeno-burguesa de província que, à força de ter alimentado sua imaginação adolescente com literatura romanesca, ambicionou ‘tornar-se outra’ em relação ao destino que lhe era predestinado.

Ressentimento, de Maria Rita Kehl

O livro aborda a conceitualização do ressentimento a partir de quatro pontos de vista: a clínica psicanalítica, a filosofia de Nietzsche e Espinosa, a produção literária e o campo político. O ressentimento não é um conceito clássico da psicanálise; assim, Maria Rita Kehl mobiliza tanto as suas observações clínicas quanto conhecimentos de outras áreas para definir e explicar a constelação afetiva que forma o ressentimento.

Neném outra vez!, de Maria Rita Kehl Laerte Coutinho

A divertida incursão de Maria Rita Kehl na literatura infantil aborda o ciúme entre irmãos como pretexto para falar sobre questões mais profundas com as crianças, como o poder da vontade, o amor próprio e aceitação de mudanças na vida. O livro é ilustrado pela cartunista Laerte Coutinho.

O disco-pizza, de Maria Rita Kehl Laerte Coutinho

Gil é um garotinho de sete anos que tem muita vontade de comemorar o Natal. Sua família diz que é uma data comercial e, por isso, eles nunca fazem os tradicionais festejos em casa. O menino até concorda com a decisão, mas pensa que seria bacana uma árvore cheia de bolas coloridas e luzinhas, presentes ao pé da cama e muita coisa gostosa para comer. Maria Rita Kehl e Laerte trazem ao leitor essa nova obra cheia de criatividade e ressignificação de tradições.

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Last Update: 13/02/2025